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Menino besta cheio de sonhos aprisonado no corpo de um homem sóbrio e cheio de desejos.

Escolha a dose.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Sexta Santa.

Dona Norma era com certeza a mulher mais respeitada de Nazaré das Farinhas.De casa pra missa, da missa pra casa, vivia modesta e reservadamente com uma razoável pensão deixara pelo marido de quem enviuvara a menos de dois anos. De mal em sua vida só um; dizia-se em Nazaré que ela sofria de um tal furor uterino, uns calores que tomam conta do corpo das mulheres e fazem com que elas percam o juízo. Uma coisa realmente de dar pena, principalmente em se tratando de uma pessoa tão recatada e pudica como dona Norma.

O mal, de que padecia a muito, era aliviada apenas pelas aplicações de uma droga milagrosa, receita do próprio Dr. Peçanha, o marido, que enquanto vivo incumbia-se semanalmente das aplicações. Após sua morte, o respeitado médico fora substituído pela Irmã Delphina na tarefa de aplicar-lhe as tão necessárias injeções. Os vizinhos, cientes do fato, jamais tocaram no assunto e em respeito à Dona Norma até evitaram ficar nas calçadas quando irmã Delphina, ex-enfermeira e ex-combatente da FEB nas frentes de Monte Castelo, apontava no alto da Ladeira do Rosário munida da cintilante caixinha metálica contendo a imaculada seringa. Afinal era até um pecado imaginar Dona Norma, com as saias levantadas, nádegas expostas aguardando a picada. Deus do céu. Isso era até uma ofensa.

De torto em Nazaré havia um: o Braga.

Sem nunca ter trabalhado um dia sequer na vida, Braga vivia na porta da Confeitaria Colombo, cadeira escorada na parede e entre uma cervejinha e um bom papo, incumbia-se de banca de bicho ali instalada. De resto, era só tomar conta da vida de quem morava no bairro.

- Olha lá seu Malheiros, lá vem a imã Delphina. Mas parece um caminhão FNM descendo a ladeira. Que desperdício. Toda sexta-feira, dia de Oxalá e de muita sacanagem, esse sargento de saias vem espetar aquela bunda branca, linda e cheirosa. Que crime seu Malheiros.

- Olha mais respeito ó pá. Com Dona Norma tu não vais tirar ofensas na frente de meu estabelecimento. Aquela mulher é uma santa. A minha Gertrudes que está a trabalhar com ela costurando roupinhas para a caridade, disse-me que em casa, mantém espelhos cobertos e uma vela sempre acesa junto à foto Dr. Peçanha, que Deus o tenha. Aquilo é um exemplo de devoção.

- Ela é, é muito gostosa seu Malheiros e com quase dois anos sem uma picotada ela já deve estar gostando até da furada da agulha.

O Braga não tinha jeito mas de fato, Dona Norma era uma viúva e tanto. Casara-se muito nova e o Dr. Peçanha, que detestava crianças, jamais havia permitido que ela tivesse filhos evitando-os a qualquer custo, mesmo que isso os obrigasse a uma penosa abstinência. Desta forma, Dona Norma mantinha o frescor da juventude e se não fosse o negro, imposto pelo severo luto, os longos cabelos eternamente cobertos e o rosto pálido, sempre estampando o ar da dolorosa convivência com o Dr. Peçanha, ninguém resistiria a tanta beleza contida caminhando todos os dias em direção a Igreja de São José. Mas repito, pensar nisso era até pecado.

Domingo, último dia da Novena de São José, o Braga deu por falta da Dona Norma na volta da missa.

- Seu Malheiros cadê Dona Norma? Ainda não voltou da igreja? Será que resolveu perde-se de vez?

- Tu não perdes esta tua falta de respeito, não é ô Braga? A Gertrudes contou-me que a Irmã Delphina foi chamada para servir na Santa Casa em Riachão das Neves e mudou-se pra lá. A esta altura, a Dona Norma deve estar na farmácia, entendendo-se com o Tertuliano para que este lhe aplique as tais injeções. Pobre rolinha, imagine a vergonha e o constrangimento?

- Pobre é de mim seu Malheiros. Aquele Tertuliano é um bosta. Aquilo nem atravessa a rua do Julião pra não ter que olhar pras putas. Onde já se viu seu Malheiros, um cara bonitão daqueles, solteiro, que tem vergonha de puta, pode ganhar um presente desses? Olhar pra aquela bundona branca toda sexta feira? Olha, bota mais uma aqui seu Malheiros, pelo amor de Cristo, ora me faça o favor, que sacanagem, que injustiça, assim não dá...

O suor descia frio pela testa de Tertuliano quando Dona Norma entregou-lhe a receita com a indecifrável caligrafia do Dr. Peçanha. Mas o punho do falecido não deixára dúvidas aos olhos experientes do trêmulo farmacêutico, ali estavam os ingredientes de um poderoso calmante e sua posologia indicava: Uma ampola de 5 ml aplicada ao glúteo de sete em sete dias.

Faltaram-lhe as pernas, o ar, as palavras. Do outro lado do balcão da farmácia, mas cândida que um querubim aos pés de Nossa Senhora da Conceição, Dona Norma aguardava a resposta. Tertuliano sabia, que com a mudança de Irmã Delphina e fora ele, só o negro Coló aplicava injeção em Nazaré das Farinhas. Mas não ficaria bem, afinal o Dr. Peçanha jamais gostou de pretos e iria revira-se no túmulo só de imaginar a cena hedionda.

- Então seu Tertuliano posso conta o com senhor sexta-feira?

Ele iria ao sacrifício. Mas impunha uma condição:

- Faça-me então um favor Dona Norma, mantenha as luzes apagadas, janelas e cortinas fechadas pois, como à senhora sabe, a deontologia farmacêutica obriga o terapeuta a manter a maior discrição possível. Depois da missa das seis, a senhora deve aguardar-me de cúbito ventral e não será necessário nenhum pagamento. Farei isso em memória e respeito ao Dr. Peçanha que nunca deixou de me recomendar seus pacientes.

Mentira. Aquilo era uma mistura de pânico e vergonha. Tertuliano sabia que se não fosse o fato de ter herdado junto com a farmácia a experiência do pai, seu destino seria certamente o seminário de padres em São Francisco do Conde, tamanha a inocência. Mas ele não tinha outra saída. Se até então, para a aplicação de injeções em pacientes do sexo feminino, Tertuliano sempre recorrera aos préstimos da irmã Delphina, agora, nem todo o Convento do Carmo orando em coro evitaria que ele fosse obrigado ao sacrifício.

Durante as semanas seguintes era sagrado, Tertuliano passava mal toda quinta-feira só de lembrar que no dia seguinte teria de cumprir a terrível tarefa de encarar, com todo pudor, a bunda de Dona Norma. Pra ele aquilo era um martírio.

Com o passar do tempo, a relação de Tertuliano e dona Norma foi se transformando. Como combinado, às sextas-feiras na hora certa, ela mantinha sua porta da rua entreaberta, as luzes apagadas e as cortinas corridas. Ao entrar, em cerimonioso silencio, o farmacêutico já a encontrava no escuro, de bruços em sua cama, tendo exposta apenas a região glútea iluminada pela áurea tênue do abajur japonês. Tertuliano que trazia a seringa já preparada de vésperas tocava-lhe as nádegas levemente com a mão esquerda e com a pontaria certeira e a picada quase indolor, injetava-lhe o liquido curador. Aquele instante era de fato o único deleite que ambos tinham na vida. Um momento sublime de prazer cúmplice e silencioso. Vinha então o clímax. Munido de um tufo de algodão, Tertuliano recolhia uma pequena gotícula de sangue que surgia quase que do nada em meio a tanta alvura e após espalhar gentilmente um pouco de álcool na pele de Dona Norma, ele deixava escapar um pequeno sobro, quase um suspiro, que fazia a viúva arrepiar-se se agarrando as fronhas dos travesseiros.

Em êxtase, Tertuliano desceria enlevado a Ladeira do Rosário em meio a pensamentos pecaminosos e deixaria Dona Norma, ainda por algumas horas, deitada em sua cama entre desejos calados e sonhos de prazer.

A vida corria tranqüila em Nazaré das Farinhas, até que na primeira Sexta-Feira do mês de Maria, a mão de Tertuliano, pareceu a Dona Norma, um pouco mais pesada. Na verdade lhe pareceu que ele a estava acariciando, mais ainda, ela pôde sentir seu hálito quente antes mesmo que um par de lábios tocassem suas nádegas num demorado beijo. Finalmente, Tertuliano perdera o controle. Suas mãos percorriam-lhe o dorso como a de cego que tateia uma página preciosa produzida pela herança de Braile. Num gesto súbito ele entreabriu-lhe as coxas e ofegante e mergulhou o rosto em suas nádegas como um beduíno saciando a sede a beira do poço. Finalmente o dia chegara. Na penumbra, a volúpia tomaria conta do casal. Todos aqueles momentos de tortura reprimida explodiram num balé de prazer e silêncio. Um silêncio consciente e um prazer animal.

Não falaram. Nem sequer se olharam. Naquele dia, Dona Norma dormiu como um anjo e a receita Dr. Peçanha não foi necessária naquela semana.

Na sexta-feira seguinte, a caminho da casa de Dona Norma, Tertuliano parou para um café na Confeitaria Colombo.

- Pois é meu caro senhor Malheiros, semana passada tive de ir a Riachão para o enterro de uma parenta. Justo na Sexta-Feira, que como o senhor sabe, era dia de cumprir minha obrigação com Dona Norma.

Junto à mesa de sinuca ao fundo da confeitaria e sacudindo com ambas as mãos o volume tinha entre as pernas, o Braga nem sequer ergueu os olhos para retrucar-lhe.

- Tem problema não Tertuliano, Sexta passada você não tava aqui e aí quem aplicou injeção na viúva fui eu. Disse Braga erguendo o copo de cerveja num brinde cínico à sua própria vitória.

- És um louco ô Braga. - Exclamou o português – Tu invadiste a casa do Dr. Peçanha?

- Invadi não Seu Malheiros. A porta já tava aberta.

No local onde antes estava Tertuliano só havia uma xícara espatifada em cacos no chão.

Como um sonâmbulo, ele descera a Ladeira do Rosário e reabrira a farmácia. Só após algum tempo, aparentemente recuperado das palavras do Braga, ele voltou a passar pela confeitaria carregando a seringa.

Os olhos do português acompanharam o vulto farmacêutico até sumir pelo pesado portão que expunha uma reluzente placa de latão: Dr. PEÇANHA. CLÍNICO GERAL.

No domingo seguinte Dona Norma não foi à missa. Na Segunda, Gertrudes foi às costuras e a encontrou em casa deitada na cama, nua, morta. Aos seus pés, no chão, sob a luz de uma abajur japonês, estava também o corpo frio de Tertuliano ostentando uma seringa espetada no pescoço.

Inerte na cama, Dona Norma ainda sorria na expectativa da chegada de Tertuliano, seu recente amante. Morrera sem nunca saber que o traíra e fora morta primeiro pela injeção do mesmo veneno com o qual Tertuliano também se matara.


 As missas de Sexta, na Igreja de Nossa Senhora do Rosário, nunca mais foram as mesmas. Sobre o povo de Nazaré das Farinhas pesa até hoje um estrondoso silêncio e para eles, essa estória nunca existiu.

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