Dona Norma era com certeza a mulher
mais respeitada de Nazaré das Farinhas.De casa pra missa, da missa
pra casa, vivia modesta e reservadamente com uma razoável pensão
deixara pelo marido de quem enviuvara a menos de dois anos. De mal em
sua vida só um; dizia-se em Nazaré que ela sofria de um tal furor
uterino, uns calores que tomam conta do corpo das mulheres e fazem
com que elas percam o juízo. Uma coisa realmente de dar pena,
principalmente em se tratando de uma pessoa tão recatada e pudica
como dona Norma.
O mal, de que padecia a muito, era
aliviada apenas pelas aplicações de uma droga milagrosa, receita do
próprio Dr. Peçanha, o marido, que enquanto vivo incumbia-se
semanalmente das aplicações. Após sua morte, o respeitado médico
fora substituído pela Irmã Delphina na tarefa de aplicar-lhe as tão
necessárias injeções. Os vizinhos, cientes do fato, jamais tocaram
no assunto e em respeito à Dona Norma até evitaram ficar nas
calçadas quando irmã Delphina, ex-enfermeira e ex-combatente da FEB
nas frentes de Monte Castelo, apontava no alto da Ladeira do Rosário
munida da cintilante caixinha metálica contendo a imaculada seringa.
Afinal era até um pecado imaginar Dona Norma, com as saias
levantadas, nádegas expostas aguardando a picada. Deus do céu. Isso
era até uma ofensa.
De torto em Nazaré havia um: o
Braga.
Sem nunca ter trabalhado um dia
sequer na vida, Braga vivia na porta da Confeitaria Colombo, cadeira
escorada na parede e entre uma cervejinha e um bom papo, incumbia-se
de banca de bicho ali instalada. De resto, era só tomar conta da
vida de quem morava no bairro.
- Olha lá seu Malheiros, lá vem a
imã Delphina. Mas parece um caminhão FNM descendo a ladeira. Que
desperdício. Toda sexta-feira, dia de Oxalá e de muita sacanagem,
esse sargento de saias vem espetar aquela bunda branca, linda e
cheirosa. Que crime seu Malheiros.
- Olha mais respeito ó pá. Com Dona
Norma tu não vais tirar ofensas na frente de meu estabelecimento.
Aquela mulher é uma santa. A minha Gertrudes que está a trabalhar
com ela costurando roupinhas para a caridade, disse-me que em casa,
mantém espelhos cobertos e uma vela sempre acesa junto à foto Dr.
Peçanha, que Deus o tenha. Aquilo é um exemplo de devoção.
- Ela é, é muito gostosa seu
Malheiros e com quase dois anos sem uma picotada ela já deve estar
gostando até da furada da agulha.
O Braga não tinha jeito mas de fato,
Dona Norma era uma viúva e tanto. Casara-se muito nova e o Dr.
Peçanha, que detestava crianças, jamais havia permitido que ela
tivesse filhos evitando-os a qualquer custo, mesmo que isso os
obrigasse a uma penosa abstinência. Desta forma, Dona Norma
mantinha o frescor da juventude e se não fosse o negro, imposto pelo
severo luto, os longos cabelos eternamente cobertos e o rosto pálido,
sempre estampando o ar da dolorosa convivência com o Dr.
Peçanha, ninguém resistiria a tanta beleza contida caminhando
todos os dias em direção a Igreja de São José. Mas repito, pensar
nisso era até pecado.
Domingo, último dia da Novena de São
José, o Braga deu por falta da Dona Norma na volta da missa.
- Seu Malheiros cadê Dona Norma?
Ainda não voltou da igreja? Será que resolveu perde-se de vez?
- Tu não perdes esta tua falta de
respeito, não é ô Braga? A Gertrudes contou-me que a Irmã
Delphina foi chamada para servir na Santa Casa em Riachão das Neves
e mudou-se pra lá. A esta altura, a Dona Norma deve estar na
farmácia, entendendo-se com o Tertuliano para que este lhe aplique
as tais injeções. Pobre rolinha, imagine a vergonha e o
constrangimento?
- Pobre é de mim seu Malheiros.
Aquele Tertuliano é um bosta. Aquilo nem atravessa a rua do Julião
pra não ter que olhar pras putas. Onde já se viu seu Malheiros, um
cara bonitão daqueles, solteiro, que tem vergonha de puta, pode
ganhar um presente desses? Olhar pra aquela bundona branca toda sexta
feira? Olha, bota mais uma aqui seu Malheiros, pelo amor de Cristo,
ora me faça o favor, que sacanagem, que injustiça, assim não dá...
O suor descia frio pela testa de
Tertuliano quando Dona Norma entregou-lhe a receita com a
indecifrável caligrafia do Dr. Peçanha. Mas o punho do falecido não
deixára dúvidas aos olhos experientes do trêmulo farmacêutico,
ali estavam os ingredientes de um poderoso calmante e sua posologia
indicava: Uma ampola de 5 ml aplicada ao glúteo de sete em sete
dias.
Faltaram-lhe as pernas, o ar, as
palavras. Do outro lado do balcão da farmácia, mas cândida que um
querubim aos pés de Nossa Senhora da Conceição, Dona Norma
aguardava a resposta. Tertuliano sabia, que com a mudança de Irmã
Delphina e fora ele, só o negro Coló aplicava injeção em Nazaré
das Farinhas. Mas não ficaria bem, afinal o Dr. Peçanha jamais
gostou de pretos e iria revira-se no túmulo só de imaginar a cena
hedionda.
- Então seu Tertuliano posso conta o
com senhor sexta-feira?
Ele iria ao sacrifício. Mas impunha
uma condição:
- Faça-me então um favor Dona Norma,
mantenha as luzes apagadas, janelas e cortinas fechadas pois, como à
senhora sabe, a deontologia farmacêutica obriga o terapeuta a manter
a maior discrição possível. Depois da missa das seis, a senhora
deve aguardar-me de cúbito ventral e não será necessário nenhum
pagamento. Farei isso em memória e respeito ao Dr. Peçanha que
nunca deixou de me recomendar seus pacientes.
Mentira. Aquilo era uma mistura de
pânico e vergonha. Tertuliano sabia que se não fosse o fato de ter
herdado junto com a farmácia a experiência do pai, seu destino
seria certamente o seminário de padres em São Francisco do Conde,
tamanha a inocência. Mas ele não tinha outra saída. Se até então,
para a aplicação de injeções em pacientes do sexo feminino,
Tertuliano sempre recorrera aos préstimos da irmã Delphina, agora,
nem todo o Convento do Carmo orando em coro evitaria que ele fosse
obrigado ao sacrifício.
Durante as semanas seguintes era
sagrado, Tertuliano passava mal toda quinta-feira só de lembrar que
no dia seguinte teria de cumprir a terrível tarefa de encarar, com
todo pudor, a bunda de Dona Norma. Pra ele aquilo era um martírio.
Com o passar do tempo, a relação de
Tertuliano e dona Norma foi se transformando. Como combinado, às
sextas-feiras na hora certa, ela mantinha sua porta da rua
entreaberta, as luzes apagadas e as cortinas corridas. Ao entrar, em
cerimonioso silencio, o farmacêutico já a encontrava no escuro, de
bruços em sua cama, tendo exposta apenas a região glútea iluminada
pela áurea tênue do abajur japonês. Tertuliano que trazia a
seringa já preparada de vésperas tocava-lhe as nádegas levemente
com a mão esquerda e com a pontaria certeira e a picada quase
indolor, injetava-lhe o liquido curador. Aquele instante era de fato
o único deleite que ambos tinham na vida. Um momento sublime de
prazer cúmplice e silencioso. Vinha então o clímax. Munido de um
tufo de algodão, Tertuliano recolhia uma pequena gotícula de sangue
que surgia quase que do nada em meio a tanta alvura e após espalhar
gentilmente um pouco de álcool na pele de Dona Norma, ele deixava
escapar um pequeno sobro, quase um suspiro, que fazia a viúva
arrepiar-se se agarrando as fronhas dos travesseiros.
Em êxtase, Tertuliano desceria
enlevado a Ladeira do Rosário em meio a pensamentos pecaminosos e
deixaria Dona Norma, ainda por algumas horas, deitada em sua cama
entre desejos calados e sonhos de prazer.
A vida corria tranqüila em Nazaré
das Farinhas, até que na primeira Sexta-Feira do mês de Maria, a
mão de Tertuliano, pareceu a Dona Norma, um pouco mais pesada. Na
verdade lhe pareceu que ele a estava acariciando, mais ainda, ela
pôde sentir seu hálito quente antes mesmo que um par de lábios
tocassem suas nádegas num demorado beijo. Finalmente, Tertuliano
perdera o controle. Suas mãos percorriam-lhe o dorso como a de cego
que tateia uma página preciosa produzida pela herança de Braile.
Num gesto súbito ele entreabriu-lhe as coxas e ofegante e mergulhou
o rosto em suas nádegas como um beduíno saciando a sede a beira do
poço. Finalmente o dia chegara. Na penumbra, a volúpia tomaria
conta do casal. Todos aqueles momentos de tortura reprimida
explodiram num balé de prazer e silêncio. Um silêncio consciente e
um prazer animal.
Não falaram. Nem sequer se olharam.
Naquele dia, Dona Norma dormiu como um anjo e a receita Dr. Peçanha
não foi necessária naquela semana.
Na sexta-feira seguinte, a caminho da
casa de Dona Norma, Tertuliano parou para um café na Confeitaria
Colombo.
- Pois é meu caro senhor Malheiros,
semana passada tive de ir a Riachão para o enterro de uma parenta.
Justo na Sexta-Feira, que como o senhor sabe, era dia de cumprir
minha obrigação com Dona Norma.
Junto à mesa de sinuca ao fundo da
confeitaria e sacudindo com ambas as mãos o volume tinha entre as
pernas, o Braga nem sequer ergueu os olhos para retrucar-lhe.
- Tem problema não Tertuliano, Sexta
passada você não tava aqui e aí quem aplicou injeção na viúva
fui eu. Disse Braga erguendo o copo de cerveja num brinde cínico à
sua própria vitória.
- És um louco ô Braga. - Exclamou o
português – Tu invadiste a casa do Dr. Peçanha?
- Invadi não Seu Malheiros. A porta
já tava aberta.
No local onde antes estava Tertuliano
só havia uma xícara espatifada em cacos no chão.
Como um sonâmbulo, ele descera a
Ladeira do Rosário e reabrira a farmácia. Só após algum tempo,
aparentemente recuperado das palavras do Braga, ele voltou a passar
pela confeitaria carregando a seringa.
Os olhos do português acompanharam o
vulto farmacêutico até sumir pelo pesado portão que expunha uma
reluzente placa de latão: Dr. PEÇANHA. CLÍNICO GERAL.
No domingo seguinte Dona Norma não
foi à missa. Na Segunda, Gertrudes foi às costuras e a encontrou em
casa deitada na cama, nua, morta. Aos seus pés, no chão, sob a luz
de uma abajur japonês, estava também o corpo frio de Tertuliano
ostentando uma seringa espetada no pescoço.
Inerte na cama, Dona Norma ainda
sorria na expectativa da chegada de Tertuliano, seu recente amante.
Morrera sem nunca saber que o traíra e fora morta primeiro pela
injeção do mesmo veneno com o qual Tertuliano também se matara.
As missas de Sexta, na Igreja de
Nossa Senhora do Rosário, nunca mais foram as mesmas. Sobre o povo
de Nazaré das Farinhas pesa até hoje um estrondoso silêncio e para
eles, essa estória nunca existiu.
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