Nota:

Minha foto
Menino besta cheio de sonhos aprisonado no corpo de um homem sóbrio e cheio de desejos.

Escolha a dose.

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Amar um homem.

Nem me faço de Maria para poder amar então.
Homens se amam até, sem sentir tocar a mão.
É amor de amigo, é amor de irmão.
É fácil assim amar João.

Sete pecados.

Pecou da pele aos ossos sem o mínimo sentimento de culpa.
Foi mesmo sem perceber que passou a desejá-lo com tanta gula. Ela não havia escolhido sentir tanta inveja de qualquer outra que se aproximasse e tomava-se de ira , quando imaginava a possibilidade de vê-lo entregue a braços que não eram os dela. Tinha orgulho de amá-lo. Entregava-se a ele deliciando-se na luxúria merecida até deixar-se tomar pela preguiça. Ela o queria só para ela, com tamanha avareza, que percebeu que amar assim era pecar sete vezes. Mas foi ai que ele deixou de amá-la.


Vê-la passar.

Ela passava como passava todos os dias úteis e vê-la passar era a coisa mais útil à sua alma naqueles dias.
Vender flores na mais movimentada esquina da cidade era negócio de bom lucro. Mas ele lucrava muito mais, só em vê-la passar. Naqueles momentos ele só ouvia seus passos e todo o resto; vozes, trânsito e todos os sons urbanos, eram apenas silêncio em seus ouvidos. Só havia o toc-toc dos saltos, só havia ela passando.
Ele sonhava que todas as flores que vendia seriam enviadas para ela. Que todo aquele perfume da esquina na verdade emanava do corpo dela. E que todos os olhares que recebia eram olhares dela.
De onde ela vinha ou pra onde ela ia jamais saberia. Ela apenas passava. Ele vendia flores e sorria quando ela passava entre ele e o sol. Era assim que sua sombra o acariciava por inteiro.

Juntos.

Eles sempre se sentavam no mesmo banco da mesma praça. Ele a abraçava sobre os ombros enquanto ela tomava sua outra mão ao colo. Por vezes eram só silêncio e lembranças, outros instantes, eram só estórias e risos de momentos vividos. Bem vividos. Haveria sempre uma nova ruga e alguma nova veia saltando nas mãos, haveria aquele desalinhado no vestir, haveria a caspa e o mesmo perfume, tão íntimo e familiar, quanto as próprias dentaduras. Ele faria anotações numa agenda de compromissos imaginários. Ela veria novamente as mesmas fotografias.
E eram na verdade os pombos que os observavam.
As lentes turvas dos óculos refletiam claramente a história daquele amor metamorfoseado pela vida. O dia em que se conheceram, a música que os emocionava, o primeiro beijo, a paixão, a união, filhos e netos.
Eles ainda se amavam e amavam ainda estarem juntos aqui.
E tudo que mais queriam era poder um dia ter o direto de partirem juntos.


Doente de amor.

Amar é curar sem entender a doença.

Efeitos colaterais.

Quem me mandou voltar a ser feliz?

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Pra quando ela casar.

Sentada à nuvem de promessas chega ela toda em noiva. Sem pomba, apenas ao som da flauta de um fausto que melodia o quando ela foi sempre simples. E por sempre ter vivido nessa premissa, agora teria a certeza que não mais viveria assim, simplesmente.
Ao descer e pisar o chão, um último tropeço assinalou a lembrança do passado trôpego e a certeza que aquele seria o último lapso no seu viver.
Sobre o tapete de pequenas flores brancas, como que carregadas por pequenos insetos tremulando vivas aos seus pés, ela pisa pairando num rastro singular de estrelas salpicadas ao chão. Ela caminha até o altar e seu sorriso a possui descaradamente, inundando de júbilo a catedral prateada. A cada passo uma tristeza esquecida, a cada instante uma promessa cumprida. Vestida na branca alegria de cauda longa onde cabem todos os amigos, ostenta um véu de vitórias, uma coroa de sonhos a serem sonhados por dois. Nas mãos, um ramo de trigo e centeio adornado em laços na longa fita reluzente e de leve pêssego ao tom, trás a prova do alimento que irá prover tal união. Uma flor de figo simboliza que haverá frutos. Confortáveis e elegantes saltos a fazem caminhar com independência e determinação.
Em terno costurado na verdade e no compromisso, lhe aguarda de pé o futuro de felicidade. Ele lhe toma a mão e a faz arrepiar de prazer como já fossem núpcias consumadas. Seu homem, seu eu, seu nós. Sim, ela dirá sim, nunca mais diria não, é o amor puro que a propunha em união, é o cúmplice protetor que a convida a desfrutar um néctar jamais provado, estava ali o fim da desordem, o cessar da dor, a porta do viver bem.
E ela diz sim.
Todo o universo sorriu naquele momento, todas as canções foram ouvidas, todas as lágrimas enxutas, todos os poemas foram lidos e todos os pecados foram perdoados.
E ele disse assim:
—Quero sempre me casar com você.
e.



segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Porto.

Enquanto você se atraca em mim eu naufrago.

À sua sombra.

Gosto quando você passa entre eu e o sol. Assim sua sombra me acaricia por inteiro.

Voar.

A casa caiu, o coração partiu e o mundo se abriu esgoelado pronto para engolir-la. Não havia chão nem estrada, a fraca chama de luz se apagara e nada mais conseguiria ver à frente. Dali em diante seria apenas um caminhar lento, de tropeços e pés arrastando-se no viver. Apenas um andar adiante e necessário. O olhar sobre os ombros revendo seu passado e o fitar o chão, agora tão freqüente em sua vida, lhe cobriam com um manto de chumbo. Andaria sim porque necessário o era. Andaria pela mesma rua a reconstruir a casa, colar pedaços do coração e se fechar para o mundo.
No caminho, o mesmo despercebível mendigo, sentado na mesma esquina, que sempre a olhara de longe todos os dias, estendeu-lhe a mão, uma palma esquálida e menos afortunada ainda.
Havia algo, na mão daquele homem tão despercebível, havia algo, no olhar daquele homem tão despercebível, havia algo naquele homem, algo que ela nunca havia percebido e não compreendia :  por que ele sorria?
Ao invés de uma moeda ela apenas lhe retribuiu o sorriso. Ao invés de afastar-se ela tomou sua mão.
Foi nessa hora que lhes nasceram as asas e juntos, eles voaram dali.
(e.)


sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Chamar a atenção.

Às vezes você chora e ninguém vê as suas lágrimas…
Às vezes você se entristece e ninguém percebe o seu abatimento…
Às vezes você sorri e ninguém repara na beleza do seu sorriso…
Agora solta um pum pra você ver...

Luz no fim do túnel.

Existe sim a luz no fim do túnel o problema é que as vezes o túnel parece longo demais.

Como se fosse mágica.

Escolha uma carta. Qualquer uma. Embaralhe tudo e torne a embaralhar outra vez. Agora feche os olhos, abra o baralho num leque preciso e retire a carta. Foi essa a carta que você escolheu? Não? Graças a Deus. Que tédio seria ter um baralho nas mãos, 52 diferentes opções de cartas e você tirar sempre a mesma.
O viver eloqüente está na novidade, no diferente, no novo e no desconhecido. A prestidigitação dos dias é uma total perda de tempo. Não me encanta saber o futuro, que se afastem de mim todas as previsões, não quero saber se serei feliz ou não. Não me alimento na perfeição das minhas fantasia e não me admito chorar pelo leite ainda nem derramado. Que venha o futuro como vier e me tome como mágica. Que seja o bem ou o mal, mas que seja intenso e surpreendente novo.
Se bem que se um mágico tirar um elefante da cartola vai ter sempre um canalha pra falar: Porra! Não era pra ser um coelho? Fico com a mágica do viver.

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Tenho pressa.

Pra que a pressa? Tenho todo o tempo do mundo e um mundo num segundo se conta a cada minuto. Cresço olhando sobre meus ombros, vendo o que se passou, não foi nada comparado o que ainda passará. Levam-se anos para construir e segundos para destruir. Vão-me passar dezenas de vidas como passam as águas de um rio que nunca mais voltarão, pois não importa o que tenho, mas sim, a quem tenho. Qual o tamanho dos meus sonhos? Quão grande é minha ousadia? Onde quero chegar? Ouso contar meus sonhos em confiança, acordo, não durmo, abraço a calma imperfeita e mesmo que tardio, mesmo assim, sorrio. Desamarro a alma, respiro, me alimentará a calma e a esperança, e vou pisar sem desconfiança as tábuas da ponte do que há de vir. Vivo sem pressa porque o ontem já se foi e o amanhã talvez, nunca virá. Sonho de novo como se fosse viver para sempre e vivo, como se fosse morrer amanhã.


Pelas Borboletas.

Nascida lagarta, frágil e faminta, gastou metade da curta vida em vão pra enfim vir a ser o que é. Vive então pelo mundo num inconcebível esforço de viver, sempre a se esquivar de bicadas precisas e ventos cruéis, nessa vidinha de migrar interminável a que se propõe, apenas em busca da parceria certa. O mínimo frio lhe paralisa as asas, que horas servem de aviso inútil “Não me coma.”, horas lhe permite o induzido desaparecer camuflado e breve repouso.
Para se alimentar precisa sorver o néctar mais profundo das flores, para beber se expõe em águas rasas e quase tudo à sua volta parece conspirar para que padeça.
Imagine tentar caminhar feliz enquanto lhe arremessam centenas de bolas de boliche. Para ela, seria apenas mais uma chuva.
Mesmo assim ela voa e é linda ao voar.
No fundo, somos todos borboletas.
e.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Poeira no vento.

Havia sim aquela lembrança muda, perdida num recanto qualquer, folheada de sorrisos e momentos de prazer sem culpa. Calada em confissões, toques e sons, tatuagens em mim revistas no espelho do banheiro como manchetes dos meus próprios dias passados. Banho e sabão, sabão, sabão. Está provado que a vida que se viveu não se lava da memória.
Espano a poeira que vem com o vento. Que venham os novos dias, que me inundem de novas promessas, que me tomem pela mão e me mostrem nova luz.
Ficará sim a sensação, de que em algum lugar da vida me esqueci de compor uma canção.






terça-feira, 22 de setembro de 2009

Subir a ladeira.

Ficara tudo lá, pra trás, apenas fechei a porta e saí. Dentro estava escuro, frio, úmido, tão triste que nada se refletiria no espelho. Todo esse tempo ouvira a memória arrasando qualquer sorriso, a lembrança cravando a marteladas momentos irreversíveis, planos falidos, corpo doido e o silêncio.
Depois da chuva, o luar banha as pedras da rua vazia. A rua e afinal a lua, ainda estavam ali. A passos firmes, eu subo a ladeira que sempre desci, com sapatos novos que ainda me fazem doer os velhos calos. Vou andar por novas ruas e cruzar velhas praças onde antes passeara, vou descobrir novas passagens e avenidas repletas de futuros, vou caminhar até que não sinta mais meus pés e aí, vou ver nascer meu sol outra vez.
Beijar o adorável impossível era sempre um começo. Descobrir a insuportável farsa é que se transformou no fim.
Não me ligue nunca mais, nunca mais estarei naquele lugar.
(e.)


segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Vi o amor na rua.

E se deram um ao outro em abraços apertados, beijos estalados, cachinhos em dedos enrolados e arrepios nos rostos tocados. Trocaram os conteúdos dos bolsos, se enroscaram alças de bolsas e até anéis se esfregaram quando, mãos nas mãos, seus dedos cruzaram.
Era sempre assim quando se encontravam. A cada vez, descaradamente anunciavam ao mundo seu mútuo amor. Amor risonho, infantil, iluminado, pueril, amor de nada bandido, amor de nada sofrido, um amor desentupido a escorrer pra quem quer ver.
Dois viados como se diz, não é preconceito é direito, o outro nome eu não quis. Adorei ver tanto amor e morri de inveja de tanta verdade.



Pontes.

E há quem tenha medo da travessia, medo do cair, medo de seguir adiante. Há quem prefira ficar onde está chorando aquele momento que vive sem conseguir dar mais um passo. Há os que olham para trás e não preferindo ter chegado até ali se arrependem da sua própria trajetória. Magoados, humilhados, sofridos, infelizes, dobram-se nos joelhos da auto-misericórdia e não caminham mais.
À nossa frente haverá sempre uma estrada a percorrer e atrás, caminhos ultrapassados a serem esquecidos. A cada momento uma nova travessia se apresenta. Adiante estará sempre o novo e ele não virá até você, você terá de ir até ele. Prosseguir é preciso sempre, pois lá na frente pode estar o bom por vir após o impreciso caminhar.
Seja nas vestes da esperança renovada, seja confiando nas lanternas do coração, seja no calor da mão de um amigo que te apóia, seja na certeza de que mereces o melhor, caminhe adiante.
Enfrentar mudanças é como atravessar pontes. Haverá sempre o outro lado a descobrir. E certamente um lado melhor.
(e.)

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Parece fácil.

Olhar o mundo de cima, por sobre os ombros, de soslaio, com segurança. Sentir-se superior, brilhante, mais capaz, competente, mais forte e melhor é fácil pra quem não é pobre, gordo, feio, burro, ignorante e sem talento. Se a princípio a comparação é fria e pragmática demais, no fundo somos forçados a assumir na vida muitas injustiças como essa.
Mas anota aí viu? Feio se apaixona e gordo também goza.
Na verdade o mundo não é dos melhores. A história está repleta de belos e belas, primeiros e primeiras, maiores e melhores que tiveram seus quinze minutos de fama e sucesso instantâneo, vivendo apenas na primeira camada do viver e desapareceram no escuro.
Nem todo leão passa a vida eternamente na soberba porque o viver bem não é uma propriedade dos melhores, viver bem é sim, a virtude dos felizes.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Insônia

Mais uma vez ele a rondou por toda a noite. Era o mesmo deitar inquieto, velho companheiro, que lhe tomava as noites a encher a cabeça tola de idéias e planos, sonhos que não lhe deixavam dormir. E ela gostava disso. Era a hora produtiva do seu dia onde não se interrompia por nada.
Perto dela, como um anjo que pastoreia uma criança, sua imagem em saudades balançava de lado a lado o seu pensar rasteiro. E um misto de imagens lentas de momentos passados a atropelava sem pena numa avalanche de planos futuros, possíveis ou não.
Ultimamente, ele tinha compartilhado muito dessa sua hora. Olhos no teto. Olhos nos cantos. Há luz. Um pio, latido, estalo. Um Tic, um Tac.
Virava e rolava em silenciosos lençóis, cúmplices se contorcendo em dobras a escrever mais um capítulo. Vinha o rosto, os olhos, vinham as mãos, vinha cada pedacinho dele lhe assombrar prazerosamente e inteiro ou aos pedaços, era ele na sua mente a dizer que também sente, ali, assim tão presente. Ele não prometia nem mentia sempre, mas continuaria ausente.

É certo que hoje a noite, ele a encontrara novamente. E só sua pele vai estar ausente.
(e.)


Reencontrar.

Fui eu quem não deu adeus no cais. Fui eu quem se virou e tomou o caminho de pedras. Não acenei e não acendi uma vela, apenas voltei para a velha cabana onde me sentei com minhas memórias para tomar um café. Quase morro de frio. Voltei a praia e pedi pro vento soprar ela na minha direção. Um rumo certo, uma viagem segura, um mar de alegria. Assim, me faço de porto.

Saudade.

Qualquer ausência faz mal. Qualquer distância é ruim. Qualquer carência machuca. Qualquer lacuna é fatal. E tudo isso se passa enquanto eu fico aqui, entardecendo por dentro e vendo sua ausência se pôr. Talvez eu anoiteça com lágrimas de estrelas. Talvez amanheça com um beijinho do sol. Mas com saudade.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Por consideração.

             Zora estava morta. Dentro do carro, voltando do enterro, com a vista ainda embotada pelas lágrimas, o velho Geo remexia o conteúdo da antiga caixa de charutos que lhe fora entregue na condição de parente. Dentro da caixa, trapos, poeira, algumas medalhas das vitórias nas regatas e uma carta de Zora para Carlão. Uma carta de Zora para Carlão.
- Carlos meu querido, você se foi, tenha certeza que ninguém nesse mundo está de fato preparado para tristeza da perda...
A emoção tomou conta do velho Geo e seus olhos se inundaram d´água enquanto suas lembranças o envolveram voltando no tempo. Geo tirou fora os óculos de aro grosso e abriu-se a tristeza.
Tristeza de verdade abatera-se sobre Zora, anos atrás, durante o período do luto. Perder Carlão assim, naquela idade, daquele jeito. Deus! Dava dó. Morena jambo, educada e prendada, Zora só tinha conhecido um homem na vida. Casara nova e fora feliz todos aqueles anos desde que se conheceram em Mar Grande, durante um veraneio lá pelos anos 70. Dava dó. Recém viúva, passou uns tempos magrinha, até enfeiara, coisa que se pensava impossível de acontecer.
Com Carlito, o único filho, estudando agronomia em Jaguaquara passara a viver só, na casa quase vazia. Missa, bordado, feira, mercado, fila da pensão e muita saudade. Fora triste aquele período.
Testemunha da primeira hora, o amigo Geo, nunca lhe faltara.
O nome dele era mesmo Gerlene, mas desde os tempos que moravam na Ribeira, o amigo Carlão ainda vivo, tratou de botar apelido nele. Dizia que Gerlene era nome de mulher ou, na melhor das hipóteses, nome de brilhantina. Solteirão convencido, boa pinta, sempre vivera ali por perto e fora o grande parceiro de Carlão. Da bola de gude as farras na juventude os dois eram inseparáveis. Foi até trabalhando na Fratelli-Vitta que os dois juntaram umas economias para comprar o táxi. TL 2 portas. O famoso imã: “Dirigido por mim e guiado por Deus”, exibindo de um lado o Senhor do Bomfim e do outro uma foto de Carlão, permanecera lá no painel depois da morte do parceiro. Comprara o imã na barraca do Cemitério das Quintas de Brotas no mesmo dia do enterro. Zora chorando, recortara a foto da carteira de reservista e ele colocou no imã.
Como na carta de Zora, Gerlene também passara pela dor da perda do amigo e tratara de dar sempre uma atenção à comadre. Parte da féria do táxi iria pra ela e era o táxi que bancava o afilhado Carlito em Jaguaquara. Era justo.
O fato é que mesmo finda a dor inicial e a vida ter retornado o seu curso natural, Gerlene jamais abandonara a família do parceiro. Sempre por perto, manteve firme o laço de amizade. Levava Zora ao supermercado, dentista, feira, banco e nos fins de semana tomava sua cervejinha na calçada da casa, de fora a janela do quarto de costura de Zora, batendo papo e ouvindo musica no rádio do velho TL 2 portas, o mesmo que levara Zora, anos atrás, ao Hospital da Sagrada Família quase parindo Carlito no banco de trás. Amigo do amigo, amigo da viúva.
- Eita Geo, saudades de dançar... Lembra a boate do Itapagipe? – Zora falava, mas não desgrudada o olho da costura.
- Eita Zora nem fale, agente remava pelo clube e entrava sem pagar. Bons tempos aqueles. Gerlene lembrava, lembrava de tudo. Mas lembrava também que durante todos aqueles anos desejara em silêncio a mulher do amigo morto. Silêncio doido, coração rasgado a cada beijo que testemunhara, a cada dança que invejara, a cada sorriso que não lhe fora destinado. O amigo, o parceiro o irmão Carlão, teria morrido antes da hora se tivesse sabido disso. Deus me livre! Nem Pensar.
Tantos anos de tanto silêncio haviam transformando Gerlene num quase monge. Sem mulheres, namoradas, nada. Estar perto de Zora lhe preenchia a alma. Zora que por sinal, não havia dito antes, já recuperara aquele velho brilho no olhar. Agora, Zora sorria o mesmo sorriso de menina, alto e largo. As saias rodadas que ela, Carlão, e ele em silêncio, tanto gostavam, voltaram ao dia-a-dia de Zora, ela já cantava baixinho estendendo roupa, tomava lá uns golinhos de cerveja e, principalmente, já não ia mais ao cemitério toda quinta-feira. Zora voltara a viver e com essa volta, Gerlene reavivava mais ainda sua eterna paixão.
Domingo na sacristia da Penha, Gerlene ouvia do pároco:
- Meu filho eu só sinto que o motivo que lhe trouxe aqui de volta à nossa igreja seja dessa natureza, mais fico contente por você ter me procurado. – padre Manoel Moreira tinha razão em reclamar, os fiéis estavam se afastando da Igreja da Penha.
- Me perdoe padre mais me diga de verdade: É pecado ou não? – Gerlene não teve a quem recorrer. Sempre achou que padre não podia entender de assuntos da carne mais ele iria se valer de quem?
- Meu filho, enquanto Carlos Augusto era vivo, era pecado. Desejavas a mulher do próximo. Mas queres saber? Deus já o tem em sua guarda agora, que mal mais há em sentires o que sentes? Vais a ela filho, abre-lhe o coração.
O velho TL 2 Portas passou a noite estacionado na ponta do Humaitá. Dentro, um Gerlene quase em pânico durante a noite insone.
- Padre fala e parece tão fácil, bonito, cheio de “esses” – resmungava baixinho – “Desejavas, queres, sentires, abre-lhe o coração...” Abre-lhe o coração o cacete. Zora me bota é pra correres tamanha sacanagem. Esses anos todos, ali, do lado... Ta doido! Dizer que a amo? – Ela ia ficar era puta da vida.
Mais uma vez a vida retomou seu caminho. Do ponto de táxis no Largo do Papagaio, Gerlene estava a um pulo de casa Zora e suas visitas e “ajudas” passaram a ser mais freqüentes.
- Deixa que eu lhe levo Zora. Que coisa! Vou lá deixar você pegar ônibus? – Quando o celular tocava e ele via o número dela largava até passageiro no meio da rua e corria para a Ribeira.
A tortura aumentava a cada dia. Ver Zora era risco de enfarte. No TL sem o banco do carona, pra baixo e pra cima com ela, o cruza descruza de pernas de Zora matava Gerlene. Ali, dentro do táxi. Ao alcance de suas mãos.
– Diacho! O que é que falo? Como é que eu digo? – Ah o cheiro de Zora. O mesmo cheiro que significara traição e pecado agora se mostrava promessa e desejo.
- Me deixa aqui Geo que eu vou andando o resto do caminho senão você vai ter que dar um volta enorme. - Zora pedia.
Deixava nada, Gerlene queria mais era aproveitar cada segundo da companhia dela. Levava na porta.
Domingo de tarde, Faustão na TV. Zora ficava de hobby. Gerlene era de casa não tinha problema não. Tinha sim. Gerlene na verdade mal se continha nas bermudas. O hobby transparente e puído deixava as curvas de Zora a mostra e ele, vez por outra, culpando a cerveja, corria no banheiro do quintal e tentava esfriar os ânimos no bidê. Pura tortura. Isso tinha de acabar, ele tinha de falar com ela.
- “...abre teu coração meu filho...” Nhé, nhé, nhé... fácil né? Padre sabe porra nenhuma... – Roia a cabeça de Gerlene enquanto resfriava as partes.
Terça-feira na volta do supermercado ele quase falou.
- Sabe Zora é que eu queria...
- Queria o que meu irmão? Fala.
Irmão? Irmão? Aquilo atingiu Gerlene em cheio.
- Queria... – Gerlene balbuciava – Queria levar as compras lá dentro pra aproveitar e ir no banheiro.
Desta vez foi a cabeça que ele precisou esfriar na pia. Tinha de falar. Voltou pra sala.
- Zora, companheira velha, eu quero que você saiba. – Gerlene não encontrava o jeito – Bom é que eu, eu gosto muito de você Zora. E que... bom, se você precisar...
- Eu sei, eu sei, eu sei companheiro. Sei que conto com você e também te gosto muito meu amigo. – Gostava? A cabeça de Gerlene deu uma volta e meia, Zora segurou-lhe a braço e continuou. – Você sabe que eu te gosto de você tanto quanto gostava o Carlão.
- É, sei. – Disse ele. E saiu.
Companheira? Que merda. Isso é lá jeito de chamar Zora? Ridículo. Claro que tinha que acabar era ela se lembrando do Carlão. Companheira o cacete.
No carro, Gerlene desgrudou o retrato do amigo do painel. O sorriso de Carlão na foto amarelada, parecia irônico.
- Fala pra mim meu amigo, fala. Fala como é que eu faço. Você conhece ela, melhor que eu, o que é que eu digo? Droga, eu não posso chegar e falar Zora meu amor, eu sempre te amei. Vou chegar de cara limpa e falar: Comadre, se algum dia você pensar em voltar a fazer ousadia, por favor, me dê à preferência por consideração? Ta doido? Me ajuda meu irmão? – Gerlene perguntava, mas da foto, Carlão não respondia como não respondera também todas as outras vezes anteriores.
Não tinha jeito, os meses se passavam e Gerlene já havia pensado em todas as alternativas: Flores, sorvete na Ribeira, praia, uma carta talvez. Nada, nada lhe daria a segurança de que Zora não iria sofrer com a confiança traída e acabar até com a amizade deles. E ele faria tudo, qualquer coisa pra que ela não sofresse, mesmo que isso significasse levar seu segredo para o túmulo.
E foi um túmulo que pois fim ao sofrimento e as dúvidas de Gerlene que o perseguiram por todos aqueles anos. Zora partira. Depois de algumas semanas no hospital tendo o velho companheiro aos pés da cama, velando seu padecer, o câncer a consumiu e ela morreu dormindo. E fora a pedido dele que Carlito concordara em sepultá-la no mesmo mausoléu ao lado de Carlão, nas Quintas. Fora ali, sobre os restos do caixão de Carlão que alguém encontrou a antiga caixa de charutos contendo a carta de viúva Zora para o marido morto e a entregou a Gerlene.
Como a chuva que lambia o pára-brisas, as lembranças lavaram os olhos do velho Geo e ele voltou à realidade presente. Carlito dirigia enquanto seu velho padrinho continuou a ler a carta que Zora deixara na caixa de charutos para Carlão.
-“... ninguém nesse mundo está de fato preparado para tristeza da perda. – a carta continuava – Sei que os próximos anos serão de dor, tristeza e saudades, pois você foi um grande companheiro e pai exemplar. – Com as mãos trêmulas, o velho Geo limpou as lentes dos óculos. – Eu, – Zora dizia na carta. – talvez, é que não tenha merecido seu amor e sua dedicação. Meu querido Carlos, mesmo tendo me mantido fiel a você todos esses anos, nunca tive a coragem de lhe confessar essa terrível verdade e por isso só o faço agora depois de sua morte. Carlão, dentro do meu peito meu coração o traia e jamais encontrei uma forma de lhe revelar esse segredo. Na verdade Carlão, eu sempre amei a Gerlene. Era com ele que eu queria ter me casado mesmo sabendo que meu amor não era correspondido. Portanto lhe peço perdão agora que você se foi, mas confesso também que se Gerlene um dia vier a me querer, me entregarei nos braços dele.”
E choveu, choveu, choveu.

Sexta Santa.

Dona Norma era com certeza a mulher mais respeitada de Nazaré das Farinhas.De casa pra missa, da missa pra casa, vivia modesta e reservadamente com uma razoável pensão deixara pelo marido de quem enviuvara a menos de dois anos. De mal em sua vida só um; dizia-se em Nazaré que ela sofria de um tal furor uterino, uns calores que tomam conta do corpo das mulheres e fazem com que elas percam o juízo. Uma coisa realmente de dar pena, principalmente em se tratando de uma pessoa tão recatada e pudica como dona Norma.

O mal, de que padecia a muito, era aliviada apenas pelas aplicações de uma droga milagrosa, receita do próprio Dr. Peçanha, o marido, que enquanto vivo incumbia-se semanalmente das aplicações. Após sua morte, o respeitado médico fora substituído pela Irmã Delphina na tarefa de aplicar-lhe as tão necessárias injeções. Os vizinhos, cientes do fato, jamais tocaram no assunto e em respeito à Dona Norma até evitaram ficar nas calçadas quando irmã Delphina, ex-enfermeira e ex-combatente da FEB nas frentes de Monte Castelo, apontava no alto da Ladeira do Rosário munida da cintilante caixinha metálica contendo a imaculada seringa. Afinal era até um pecado imaginar Dona Norma, com as saias levantadas, nádegas expostas aguardando a picada. Deus do céu. Isso era até uma ofensa.

De torto em Nazaré havia um: o Braga.

Sem nunca ter trabalhado um dia sequer na vida, Braga vivia na porta da Confeitaria Colombo, cadeira escorada na parede e entre uma cervejinha e um bom papo, incumbia-se de banca de bicho ali instalada. De resto, era só tomar conta da vida de quem morava no bairro.

- Olha lá seu Malheiros, lá vem a imã Delphina. Mas parece um caminhão FNM descendo a ladeira. Que desperdício. Toda sexta-feira, dia de Oxalá e de muita sacanagem, esse sargento de saias vem espetar aquela bunda branca, linda e cheirosa. Que crime seu Malheiros.

- Olha mais respeito ó pá. Com Dona Norma tu não vais tirar ofensas na frente de meu estabelecimento. Aquela mulher é uma santa. A minha Gertrudes que está a trabalhar com ela costurando roupinhas para a caridade, disse-me que em casa, mantém espelhos cobertos e uma vela sempre acesa junto à foto Dr. Peçanha, que Deus o tenha. Aquilo é um exemplo de devoção.

- Ela é, é muito gostosa seu Malheiros e com quase dois anos sem uma picotada ela já deve estar gostando até da furada da agulha.

O Braga não tinha jeito mas de fato, Dona Norma era uma viúva e tanto. Casara-se muito nova e o Dr. Peçanha, que detestava crianças, jamais havia permitido que ela tivesse filhos evitando-os a qualquer custo, mesmo que isso os obrigasse a uma penosa abstinência. Desta forma, Dona Norma mantinha o frescor da juventude e se não fosse o negro, imposto pelo severo luto, os longos cabelos eternamente cobertos e o rosto pálido, sempre estampando o ar da dolorosa convivência com o Dr. Peçanha, ninguém resistiria a tanta beleza contida caminhando todos os dias em direção a Igreja de São José. Mas repito, pensar nisso era até pecado.

Domingo, último dia da Novena de São José, o Braga deu por falta da Dona Norma na volta da missa.

- Seu Malheiros cadê Dona Norma? Ainda não voltou da igreja? Será que resolveu perde-se de vez?

- Tu não perdes esta tua falta de respeito, não é ô Braga? A Gertrudes contou-me que a Irmã Delphina foi chamada para servir na Santa Casa em Riachão das Neves e mudou-se pra lá. A esta altura, a Dona Norma deve estar na farmácia, entendendo-se com o Tertuliano para que este lhe aplique as tais injeções. Pobre rolinha, imagine a vergonha e o constrangimento?

- Pobre é de mim seu Malheiros. Aquele Tertuliano é um bosta. Aquilo nem atravessa a rua do Julião pra não ter que olhar pras putas. Onde já se viu seu Malheiros, um cara bonitão daqueles, solteiro, que tem vergonha de puta, pode ganhar um presente desses? Olhar pra aquela bundona branca toda sexta feira? Olha, bota mais uma aqui seu Malheiros, pelo amor de Cristo, ora me faça o favor, que sacanagem, que injustiça, assim não dá...

O suor descia frio pela testa de Tertuliano quando Dona Norma entregou-lhe a receita com a indecifrável caligrafia do Dr. Peçanha. Mas o punho do falecido não deixára dúvidas aos olhos experientes do trêmulo farmacêutico, ali estavam os ingredientes de um poderoso calmante e sua posologia indicava: Uma ampola de 5 ml aplicada ao glúteo de sete em sete dias.

Faltaram-lhe as pernas, o ar, as palavras. Do outro lado do balcão da farmácia, mas cândida que um querubim aos pés de Nossa Senhora da Conceição, Dona Norma aguardava a resposta. Tertuliano sabia, que com a mudança de Irmã Delphina e fora ele, só o negro Coló aplicava injeção em Nazaré das Farinhas. Mas não ficaria bem, afinal o Dr. Peçanha jamais gostou de pretos e iria revira-se no túmulo só de imaginar a cena hedionda.

- Então seu Tertuliano posso conta o com senhor sexta-feira?

Ele iria ao sacrifício. Mas impunha uma condição:

- Faça-me então um favor Dona Norma, mantenha as luzes apagadas, janelas e cortinas fechadas pois, como à senhora sabe, a deontologia farmacêutica obriga o terapeuta a manter a maior discrição possível. Depois da missa das seis, a senhora deve aguardar-me de cúbito ventral e não será necessário nenhum pagamento. Farei isso em memória e respeito ao Dr. Peçanha que nunca deixou de me recomendar seus pacientes.

Mentira. Aquilo era uma mistura de pânico e vergonha. Tertuliano sabia que se não fosse o fato de ter herdado junto com a farmácia a experiência do pai, seu destino seria certamente o seminário de padres em São Francisco do Conde, tamanha a inocência. Mas ele não tinha outra saída. Se até então, para a aplicação de injeções em pacientes do sexo feminino, Tertuliano sempre recorrera aos préstimos da irmã Delphina, agora, nem todo o Convento do Carmo orando em coro evitaria que ele fosse obrigado ao sacrifício.

Durante as semanas seguintes era sagrado, Tertuliano passava mal toda quinta-feira só de lembrar que no dia seguinte teria de cumprir a terrível tarefa de encarar, com todo pudor, a bunda de Dona Norma. Pra ele aquilo era um martírio.

Com o passar do tempo, a relação de Tertuliano e dona Norma foi se transformando. Como combinado, às sextas-feiras na hora certa, ela mantinha sua porta da rua entreaberta, as luzes apagadas e as cortinas corridas. Ao entrar, em cerimonioso silencio, o farmacêutico já a encontrava no escuro, de bruços em sua cama, tendo exposta apenas a região glútea iluminada pela áurea tênue do abajur japonês. Tertuliano que trazia a seringa já preparada de vésperas tocava-lhe as nádegas levemente com a mão esquerda e com a pontaria certeira e a picada quase indolor, injetava-lhe o liquido curador. Aquele instante era de fato o único deleite que ambos tinham na vida. Um momento sublime de prazer cúmplice e silencioso. Vinha então o clímax. Munido de um tufo de algodão, Tertuliano recolhia uma pequena gotícula de sangue que surgia quase que do nada em meio a tanta alvura e após espalhar gentilmente um pouco de álcool na pele de Dona Norma, ele deixava escapar um pequeno sobro, quase um suspiro, que fazia a viúva arrepiar-se se agarrando as fronhas dos travesseiros.

Em êxtase, Tertuliano desceria enlevado a Ladeira do Rosário em meio a pensamentos pecaminosos e deixaria Dona Norma, ainda por algumas horas, deitada em sua cama entre desejos calados e sonhos de prazer.

A vida corria tranqüila em Nazaré das Farinhas, até que na primeira Sexta-Feira do mês de Maria, a mão de Tertuliano, pareceu a Dona Norma, um pouco mais pesada. Na verdade lhe pareceu que ele a estava acariciando, mais ainda, ela pôde sentir seu hálito quente antes mesmo que um par de lábios tocassem suas nádegas num demorado beijo. Finalmente, Tertuliano perdera o controle. Suas mãos percorriam-lhe o dorso como a de cego que tateia uma página preciosa produzida pela herança de Braile. Num gesto súbito ele entreabriu-lhe as coxas e ofegante e mergulhou o rosto em suas nádegas como um beduíno saciando a sede a beira do poço. Finalmente o dia chegara. Na penumbra, a volúpia tomaria conta do casal. Todos aqueles momentos de tortura reprimida explodiram num balé de prazer e silêncio. Um silêncio consciente e um prazer animal.

Não falaram. Nem sequer se olharam. Naquele dia, Dona Norma dormiu como um anjo e a receita Dr. Peçanha não foi necessária naquela semana.

Na sexta-feira seguinte, a caminho da casa de Dona Norma, Tertuliano parou para um café na Confeitaria Colombo.

- Pois é meu caro senhor Malheiros, semana passada tive de ir a Riachão para o enterro de uma parenta. Justo na Sexta-Feira, que como o senhor sabe, era dia de cumprir minha obrigação com Dona Norma.

Junto à mesa de sinuca ao fundo da confeitaria e sacudindo com ambas as mãos o volume tinha entre as pernas, o Braga nem sequer ergueu os olhos para retrucar-lhe.

- Tem problema não Tertuliano, Sexta passada você não tava aqui e aí quem aplicou injeção na viúva fui eu. Disse Braga erguendo o copo de cerveja num brinde cínico à sua própria vitória.

- És um louco ô Braga. - Exclamou o português – Tu invadiste a casa do Dr. Peçanha?

- Invadi não Seu Malheiros. A porta já tava aberta.

No local onde antes estava Tertuliano só havia uma xícara espatifada em cacos no chão.

Como um sonâmbulo, ele descera a Ladeira do Rosário e reabrira a farmácia. Só após algum tempo, aparentemente recuperado das palavras do Braga, ele voltou a passar pela confeitaria carregando a seringa.

Os olhos do português acompanharam o vulto farmacêutico até sumir pelo pesado portão que expunha uma reluzente placa de latão: Dr. PEÇANHA. CLÍNICO GERAL.

No domingo seguinte Dona Norma não foi à missa. Na Segunda, Gertrudes foi às costuras e a encontrou em casa deitada na cama, nua, morta. Aos seus pés, no chão, sob a luz de uma abajur japonês, estava também o corpo frio de Tertuliano ostentando uma seringa espetada no pescoço.

Inerte na cama, Dona Norma ainda sorria na expectativa da chegada de Tertuliano, seu recente amante. Morrera sem nunca saber que o traíra e fora morta primeiro pela injeção do mesmo veneno com o qual Tertuliano também se matara.


 As missas de Sexta, na Igreja de Nossa Senhora do Rosário, nunca mais foram as mesmas. Sobre o povo de Nazaré das Farinhas pesa até hoje um estrondoso silêncio e para eles, essa estória nunca existiu.

Muros, telhados e quintais.

Já era difícil imaginar que eu voltaria ali à mesma rua onde cresci. A infância e a adolescência passadas a duas ou três casas dali pareciam agora tão distantes. Mesmo depois transferido de volta a Salvador há tantos anos, para na divisão de homicídios da Policia Civil, ainda não havia voltado ao meu bairro. O subúrbio distante e pobre agora assistia a suas casas serem demolidas dando lugar a um parque industrial. Tudo havia mudado. Sumiram a padaria de Dona Fina, o velho abrigo da parada de bondes, as casas gêmeas e até o imaculado Terreiro de Candomblé de Mãe Hilná. Eu não poderia sequer precisar o local exato do agradável sobrado onde vivi e que ainda emoldurava algumas das minhas lembranças.
Mas o chamado assim o exigia. Os engenheiros da obra ao cavar umas valas para cano, deram com uma ossada enterrada à sombra das árvores, do que fora o quintal daquele bangalô agora reduzido a escombros. A principio não havia muito que fazer. Fotos, exames superficiais, recolher o material e despachar para perícia. A natureza já limpara os ossos com a costumeira perfeição. Os colegas, calejados nos anos de lida diária com a violência urbana, pareciam indiferentes ao sorriso macabro que ainda na terra, nos fitava em silêncio. Apenas um velho sargento falador, com ares de detetive de filmes americanos, remexia os restos mortais indignados.
- Gente maluca! Nunca ouviram falar de cemitério não? Onde já se viu enterrar parente no quintal? Esse era da família, olha aqui, enterraram com jeito e cuidado. É muito, querer manter uma pessoa por perto mesmo depois de morta né?
Mas a voz do sargento foi sumindo, o barulho estridente da serra elétrica e as ritmadas marteladas na obra do prédio sumiram dos meus ouvidos. Olhei para cima e o mundo parou. Nas copas daquelas mangueiras vozes antigas falavam dentro da minha cabeça. Aquelas mangueiras. O quintal. Passarinhos ainda. O cheiro de café recém coado voltava nas narinas. Outra vez passarinhos, as mangas, de manhã, minha rua. Era cedo! Muros, telhados e quintais, tudo voltou à memória e eu era um menino outra vez.
Partindo do alto dos telhados do quarto de passar roupa, nos fundos lá de casa, eu podia percorrer todos os quintais do quarteirão, pulando dos muros para árvores, das árvores para os telhados. As casas eram coladas, as construções nos quintais, normalmente quartos de empregados, garagens e depósitos, uniam-se como se unissem os laços da boa vizinhança.
- Menino desce daí. Você vai quebra a cabeça. - Guiomar, misto de babá e lavadeira, negra de cabeça alva como os lençóis que quarava, nunca me fez descer dos telhados más nunca deixou de tentar.
Ali eu era índio nas montanhas, Crusoé ilhado do mundo, piloto de avião, rei das selvas. Ali eu era espião. Dali dos altos eu via tudo. E a todos espiava pós a grande aventura diária era participar anônimo das vidas nos quintais alheios. Seu Arlindo sempre de pijamas a contar dinheiros antigos, Dr Marbak comendo frutas na varanda dos fundos vestido num hobby de chambre mesmo nos janeiros mais quentes, enquanto o grito de Tia Carmem acordando os filhos para a escola ecoavam pela casa, seu Fraga, da PHILIPS, trocando o alpiste dos canários, fingia não ver quando me esgueirava pelo muro de “comogól” e então, finalmente, ganhava as mangueiras da casa do espanhol.
Meu paraíso, o quintal do espanhol, era lindo e, estudando à tarde, eu tinha toda a manhã para viver o seu cotidiano do alto dos galhos. Os canteiros bem cuidados de Dona Dolores explodiam nas cores dos mais diferentes tipos de rosa. Em pequenos caquinhos de barro cheios de terra preta, mudas e mais mudas de plantinhas pareciam promessas de sombra, frutos e novas flores. Galinhas, patos e marrecos ciscavam nos matos removendo a terra e bebericavam a água fresca da bica. Bom, a bica na verdade, não passava de um cano de ferro entortado que, mesmo arrolhado e amarrado de pano e pedaço de câmara de ar de bicicleta, pingava água nos seus pés. Aquele cano era o centro de toda a minha atenção. Ali Edivirgens lavava roupa.
Quando o cheiro de terra molhada se misturava com o café coando era sinal que o dia ia começar na casa do espanhol, que aliás, nunca era visto da segunda a sábado. Ele saia muito cedo para abrir a confeitaria no Comércio e só voltara lá pela madrugada. Vida dura daquele pobre homem. Poucas alegrias, nenhum prazer. Da confeitaria pra casa, de casa pra confeitaria. Devia ser um homem triste o espanhol.
Dentro de alguns minutos o casal de filhos sairia para a escola, fardados e engomados, tangidos por Dona Dolores, Janelinha, que havia ganhado o apelido ao perder os dentes posteriores, sempre correndo e Luisa, linda, branca e dona dos olhos verdes mais cobiçados do bairro, um pouco mais preguiçosa. A partir daí, a manhã era minha.
Tamborilando na velha bacia de alumínio presa ao sovaco e com um balde de roupa suja na cabeça e cabrocha viria até a bica e começaria o espetáculo. Agachada de pernas abertas com a bacia entre elas, Eduvirgens figiria uma indiferença manhosa mas ela sabia que eu estava ali. Sabia que despertava coisas dentro de mim, coisas que naquela idade, eu ainda não saberia explicar.
Meu Coração disparava ao ver a espuma que escorria por entre suas coxas. Por vezes, quando juntava um pouco d’água com as mãos e refrescava o próprio colo, a visão dos peitos miúdos colados ao vestido molhado fazia minhas mãos apertarem firmemente os galhos da mangueira evitando despencar lá de cima. Eduvigens sabia mesmo que eu estava ali e sabendo disso, saboreava a provocação. Ela cantaria sucessos da rádio por toda a manhã e depois de muito esfregar, enxaguar, torce e dependurar, um último balde d’água derramado lentamente sobre a cabeça a livraria do resto de sabão e suor refrescando-lhe o corpo. Essa imagem queimaria o meu corpo de menino por todo o dia.
Essa “espionice” platônica se repetiu até um certo Domingo. Domingo fatídico, onde ao invés de permanecer na cama rolando e aproveitando não ter minha mãe no meu pé com o tradicional “levanta menino vai caçar o que fazer”, eu, sem o menor motivo, levantara e fora espionar o quintal do espanhol. Eu sabia que não havia nada pra ver lá aos Domingos. Dona Dolores estaria na missa com as crianças, o espanhol aproveitando o último dia de descanso para dormir um pouco mais e, principalmente, Eduvigens não lavaria roupa. Lá chegando tudo isso teria sido confirmado se não fossem os curiosos sons que vinham do quarto de Eduvigens.
Dos galhos para o muro e do muro para o telhado das dependências, nos fundos do terreno foi a parte fácil. Levantar algumas telhas que me permitissem olhar para dentro do pequeno cubículo é que exigiu a perícia de um verdadeiro espião.
Minhas pernas estremeceram com o que vi. Parecia que o mundo inteiro podia ouvir meu coração batendo. Sobre o velho colchão de molas que rangia, Eduvirgens e o espanhol faziam como faziam os cães lá pelas ruas. Só que não latiam, estavam suados, cansados e felizes. Aquilo era novo, estranho e diferente, mas deveria ser muito bom.
- Vem meu galego, vem. Me come, me come. – Eduvigens falava baixinho.
As molas do colchão pareciam partir-se com o movimento mais intenso do casal enquanto o vai e vem ritmado aumentava de intensidade. – Mais rápido, mais rápido, mais rápido. – Gemendo e sorrindo o espanhol despencou o corpo sobre Eduvigens. Corri dali. E foi certamente um Anjo da Guarda quem guiou meus pés pelos telhados, muros e galhos pos eu nada vi no caminho até que vomitei sobre o viveiro de periquitos de seu Fraga. Aquele da PHILIPS.
Não sei quanto tempo depois retomei minhas aventuras de espião. Mais sei que a partir daquele dia, as manhãs de Domingo passaram a ser as mais emocionantes. Eu já me acostumara à cena testemunhada apenas por mim e uns poucos posters de artistas pregados pelas paredes do quartinho de Eduvigens. Diante do prazer daqueles amantes secretos, sorriamos eu, Roberto Carlos, Jerry Adriani e Wanderley Cardoso.
Aquele era um Domingo de Páscoa, lembro sim, o espanhol havia trazido ovinhos de chocolate da confeitaria e Eduvigens, ainda nua, chupava os dedos lambuzados enquanto ameaçava.
- Vou me embora sim galego. Desse jeito não quero mais.
- Não faz isso minha negrinha. Se você me deixa eu morro, você é minha única alegria. – O espanhol chorava como criança. Eu sabia como era, eu quando chorava, chorava daquele jeito.
- Vou sim galego. Ou então cê larga ela, manda ela vortá pra Ispanha, se livra dela, sei lá. Feito quenga é que eu não quero mais. – E trancou-se no banheiro enquanto o espanhol chorava no pé da porta e de joelhos ainda choramingando repetia.
- Eu dou um jeito neguinha, eu dou um jeito, mas você não me deixa nunca não. Teu lugar é aqui comigo nesse meu quintal.
Nos meus pensamentos os anos que passavam sempre lentos naquela vidinha de subúrbio voavam agora diante dos meus olhos. O índio, o piloto e o espião deram lugar à turma da esquina, ao cigarro escondido, a cervejinha, namoradas, o sonho do próprio carro, trabalho, faculdade. Eu cresci outra vez na minha memória.
Os sons voltavam, o barulho da obra, da serra elétrica, as marteladas e a voz do sargento, que ai a minha frente enfrentado a pilha de escombros, carregando os sacos plásticos negros. Eles continham o produto fúnebre do desejo de dois amantes. Caso encerrado.
- Depois de mandar pro IML tou liberado né doutor?
Liberei. Tinha ido com meu carro e ainda queria dar umas voltas pelo bairro. Novas lembranças talvez ajudassem. No fim da rua as últimas casas resistiam congeladas no tempo. E ainda como testemunhas do tempo lá estava, como sempre estiveram, Tia Lurdes e Dona Áurea, cunhadas inseparáveis sentadas à porta de casa indiferentes aos caminhões, máquinas e operários que pela rua, tomaram o lugar das crianças com peões, arraias, bolas de gude e o ir e vir dos vendedores ambulantes. Parei o carro e desci.
- Estão lembradas de mim? – Perguntei.
Tia Lurdes fez um bico torcendo o nariz e foi Dona Áurea, mesmo visivelmente vitimada por um derrame que gritou.
- Menino! É o filho de Dadinha, Lurdes! Entra menino, vem merendar.
E teria sido então apenas um tarde de lembranças, bolinhos, estórias engraçadas e dramas pessoais se o cheiro do café que Tia Ludes coava não tivesse feito eu me lembrar.
- Ô tia, a senhora lembra quando foi que Dona Dolores morreu?
- A espanhola? Morreu não menino, aquilo tem uma saúde de ferro, quem morreu foi o velho, eles ainda moravam ali. Eu fui pro enterro no Campo Santo. Pobre homem morreu como viveu: Triste e caladão. Logo depois Dolores foi morar na cidade. Janelinha teve aqui outro dia pra dizer que vendeu a casa herdada, foi ele quem me contou sabe? Contou que o espanhol morreu de tristeza depois de passar um mês sem dizer uma palavra. Morreu um mês depois que a negrinha Eduvigens desapareceu sem nem levar as malas.
Só então me dei conta que o espanhol cumprira a promessa feita a Eduvigens e ela de fato, nunca o deixara.

A Lei do Decibel.

-Cachorro! Safado! Sem vergonha!
Pulei da cama. Tinha certeza que não era comigo. Não tenho o perfil e minha mulher jamais me trataria assim mesmo que algo terrível tivesse acontecido na noite anterior. Cachorro ! Safado ! Sem vergonha ! A voz insistiu invadindo a penumbra do quarto e passei a me culpar por sonhos pecaminosos que talvez Morfeu me proporcionara e dos quais, infelizmente, eu não tinha a menor recordação. Cachorro ! Safado ! Sem vergonha ! Vinha lá de fora, corri e abri a porta da varanda. Vinha do além, do éter, do céu. Talvez Maria do alto das nuvens sem esperar o juízo final, tivesse perdido a paciência e resolvesse me julgar e condenar naquela manhã de Domingo. Não era ela. Recobrada a consciência percebi que era apenas um microfone, na mão de uma louca que reproduzia versos insensatos numa paródia de canto, o responsável pelo meu despertar. Mas a culpa não era do microfone, era mesmo da louca ligada anatomicamente à mão que o empunhava.
Num país de tantos crimes e leis alguém lá em Brasília deveria talvez, num surto de sensatez, criar uma legislação para o uso de microfones. Uma carteira de habilitação, quem sabe? O cidadão faria um curso, umas aulas práticas, uns testes básicos: Voz, domínio da língua, educação doméstica que fosse, cultura geral e quem sabe até, legislação ambiental que está na moda. Aí, e só aí, tirava carteira pra usar microfone.
Microfone é coisa perigosa, não dá pra botar a boca nele e pronto. A propagação amplificada da voz entra nos ouvidos da gente, no raio de seu alcance, é sem pedir licença. Vai entupindo o juízo mesmo sem permissão. E aqui nos deparamos com os dois principais parâmetros que definem o tamanho da responsabilidade do portador de um microfone: O conteúdo da infâmia que é propagada e o volume que a coisa se espalha sem respeitar muro, parede ou janela. E quer saber? Tem vezes que nem microfone precisa. Basta um carro, um porta-malas aberto e um imbecil com uma latinha de cerveja na mão pra desgraça estar feita. E tome pagode de romantismo duvidoso, forró erótico eletrônico, axé-music de alto impacto e sertanejo, vítima de adultério, a encher nossos ouvidos.
Mas o tal do microfone é danado. As lojas de equipamento de som deveriam exigir a tal carteirinha do comprador principalmente se fosse político, cantor ou pastor.
- Ta com a carteira aí? Deixa eu ver. Ih! Não vai dar pra vender, ta com a validade do psicotécnico vencida.
A carteirinha era coisa pra ser controlada pela Segurança Pública. Podia até se fazer uma campanha pra ajudar. O canalha ia numa delegacia, entregava o microfone e trocava por uma cesta básica. Diminuía a violência né?
O fato é que esses delinqüentes de microfone, viciados ou não, que atacam principalmente depois das dez da noite e aos Domingos o dia inteiro, se reproduzem mesmo em cativeiro nas piores condições e em diversas categorias. Senão vejamos: As adoradoras do axé são umas meninas baixinhas de sainhas curtas, “topes” e botas, que aos berros insistem para que você tire os pés do chão e lhe convidam para um lugar que só elas sabem onde é repetindo sempre “vamo lá galera”. Os pagodeiros galantes são uns rapazes com cabelos descoloridos ou ensebados de gel, que só usam camisetas sem mangas e pensam que cantam feito cariocas cheio de esses e “cê agás”, meio assim: “Corachão, para que she apaichonou, por alguém que nunca tchi amou...”. Uma barbaridade. E tem os sertanejos traídos que no meio das apresentações dão preguiça e botam os outros pra cantar: “Agora só vocês”. E esses ainda são surdos, ficam falando assim: “Quero ouvir, quero ouvir”. E você em casa, na tranqüilidade do seu lar só queria uma coisa: Não ter que ouvir.
Um dia desses a lei da carteirinha sai e a gente bota controle nos microfones.
- E aí, vai rolar o som?
- Não vai dar. Rolou uma lei de um deputado aê que eu não sei nem quem é: Um tal de Decibel.

A competência de cada um.

E daí? Você votou na mãe de alguém? Sabe lá se o cunhado dele sabe mexer no Windows? E será que a sobrinha do ex-marido da moça que apresentou o cara que vendeu o velho fusquinha da sogra do porteiro do prédio que morou a primeira namorada de um colega de república de estudantes onde estudou o irmão daquele gordinho, como era mesmo o nome dele? Bom, aí nesse caso será que é parente? E será que a questão é ser ou não ser parente? Ser ou não competente? Ou ser ou não da conta da gente? E parente entra em cédula eleitoral que nem existe mais? Ou está no retratinho da urna eletrônica junto com o candidato? Ali abraçadinho, ou aparece no horário gratuito eleitoral? Como seria a campanha? Para ex quase futuro sogro vote Adamastor com o número 477.45321. É parente, mas trabalha. Ou ainda: Vote Adamastor. O parente assessor.
O fato é que a gente elege o cara ou manda a criatura pro congresso, pra câmara, pra assembléia, pro palácio os cambaus, porque acredita nele ou nela e será apenas o que ele, ou ela, vier a fazer lá que vai garantir a qualidade desses mandatos, o sucesso da nossa escolha, o cumprimento da missão ou pior, a sua própria e desejada reeleição. Não, o trabalho, ou melhor, a participação do eleitor não acaba aí não, não estou dizendo isso. A gente não é Gelol, mas tem que participar. Tem que dar opinião, chegar ou tentar chegar junto. Tem que escrever e-mail, carta, telefonar, tem que reclamar, elogiar, dar esporro, entrar na “Cartas do Leitor”, qualquer coisa que possa colaborar com o mandato. Eu falei co-la-bo-rar. Não falei ficar jogando pisica e na falsa-moral, ficar apontando defeito com dedo sujo não.
Rapaz minha mãe costura e borda que é uma beleza, mas se entendesse mais que eu de Reforma Tributária já tava empregada no meu gabinete. Ou você preferia que fosse a sua mãe? Bom, ta certo, não vamos botar a mãe no meio, ou no cargo. Sabe o que é pior? Pior é a turma eleita ficar escondendo o jogo. Contrabandeando parente, traficando cunhado, sobrinha, irmão. Fazendo troca-troca de parente em gabinete, é um absurdo. Você bota no meu que eu boto no seu. Um horror.
A questão é mesmo de competência moral do eleito. Ou tem ou não tem. A capital mudou-se para Brasília e um exército de funcionários da casa permanece nas praias do Leblon e Ipanema. Cargos são quase que hereditários entre secretárias, taquígrafos e foto copistas. Coisa de família sabe como é né? Mas tudo concursado viu? No sertão o vereador nomeou o jumento assessor de transportes. Qual é o problema? Este ao menos, nas costas, levava o parlamentar para o trabalho muito mais que o cunhado da prefeita nomeado como motorista. Na porta do deputado lia-se “Dá-se D.A.S. 50% de comissão”. Um senador fez publicar: “Indica-se cargos federais, estaduais, municipais e imorais”.
Votou ta votado meu amigo e vamos ver no que é que dá. Se não prestar não volta e pronto. Vai-se agora querer criar uma lei pra regular quem faz lei?
- Ah! É parente? Em que grau? Em primeiro e segundo grau na lei não pode.
- É amante.
- Ah! Amante não é parente. É carente e carente pode.
- Mas é amante em primeiro grau rapaz, olha o respeito!
O melhor é ver antes se o candidato tem ao menos primeiro ou segundo grau completo. Não que faça diferença apenas ajuda a entender se em breve, em algum plenário ou gabinete se ouvir o diálogo:
- Ih colega, vinha andando ali pisei num nepotismo que fizeram bem no corredor.
- Ih rapaz! Pisou? Vai feder.

Modelo de que?

Acho que foi no paleolítico que tudo começou. Lá perto dos idos de 103.000, 101.000 anos antes de Cristo, que mesmo com uma linguagem muito rudimentar, num grupo de hominídeos catadores de amoras, uma fêmea muito provavelmente, apontando a companheira de bando com maior capacidade de catar frutinhas, disse pela primeira vez: “Eu queria ser como ela.” Daí há alguns milhares de anos depois, um australopiteco inventou que o bom mesmo era ser pitecantropo, que por sua vez confessou a um tablóide da época que era mesmo fã dos neandertais. 

De lá pra cá as coisas mudaram um pouco mas o espírito continua o mesmo. O ideal estaria sempre um passo acima na cadeia evolutiva. Todo mundo e todo o mundo queria evoluir, coisa até certo ponto muito justa, até que algum marketeiro, muito provavelmente também, inventou que evoluir não era ser melhor, era “ter” o melhor. Estava criada, lamentavelmente, a sociedade de consumo e com essa nova era, surgiam os modelos na sua acepção mais ampla, modelos do melhor para serem seguidos como ideal. Aí não deu mais pra segurar, os ícones se sucederam e a turma foi indo atrás dependendo da divulgação da imagem e a história está aí para provar.
Os gregos inventaram o primeiro desfile de moda lançando sandálias e saiinhas usadas por ricos e pobres e assim saiu Alexandre pelo mundo em suas conquistas virando o padrão de todo um império até ele morrer de inveja dos jardins suspensos que encontrou na Babilónia. Ninguém no Egito tinha a grana da Cleópatra pra comprar aqueles modelitos que ela usava, mas todo mundo pintava os mesmos risquinhos nos olhos enquanto em Roma bacanal era moda em todos as classes sociais. Eram padrões, eram os modelos.
No mundo ocidental moderno Montesquieu, Diderot e Rousseau até que se esforçaram para manter em alta um modelo iluminado mais próximo do verdadeiro evoluir, (A igualdade de todos perante a lei, a tolerância religiosa e a livre expressão do pensamento) até que um dos 23 Luíses, o XV, ponto alto do absolutismo, esculhambou tudo virando estilo, de salto a poltrona. E todo mundo queria ser como ele até a guilhotina cortar o mal pela raiz. Mas a burguesia queria mesmo era o consumo e veio a Revolução Industrial produzindo em série novos padrões para as massas. Coisa de inglês colonizador e imperialista. Seus herdeiros os Americanos do Norte tornaram-se especialistas nesse novo e promissor negócio do padrão a ser seguido. O artifício que nos abestalha como ovelhas é um velho conhecido: O Ícone. Uma pessoa ou coisa emblemática do seu tempo, do seu grupo, de um modo de agir ou pensar. Tudo bem com as sandálias de Alexandre, as togas de César, as plumas do Cyrano de Bergerac, a Cartola de Abraham Lincoln e até mesmo o charuto de Winston Churchill, eles eram os bambas e os simples mortais realmente se sentiam muito melhores ao tentarem se parecer com eles, era quase um processo natural. Não tão natural foi, com a chegada do século XX, o advento do aparecimento dos ídolos, e aqui eu não me refiro aos de pedra mas aos de carne e osso. O ídolo é um personagem que por talento ou comportamento atinge o paladar e transforma-se num padrão a ser seguido. Por consequência tome-lhe topetes de Elvis, lambretas de Mastroiani, meias da Sofia Loren, jaquetas do Marlon Brando e até os cigarros do Humphrey Bogart. Ídolos. Eles usavam o que era moda ou seria moda o que eles usassem? O caminho estava aberto.
No Brasil, pobres de nós, a história foi ingrata. Desde Cabral e sua religião enfiando calções nos Guaranis e moçoilas em bangüês exibindo negrinhos de estimação, até a arrotante Coca-Cola consumida em Big-Brothers, que os padrões de moda e comportamento nem sempre seguiram valores lógicos ou até mesmo morais. Historicamente todos os nossos modelos foram importados. Das Cortes de Lisboa até Hollywood, de Woodstock à Che Guevara, da Discoteca à Rave aceitamos muito e sofremos um bocado, mas fomos levando, comprando e usando o que o padrão determinasse.
Então porque razão dos corpetes à calça Lee, ambos irrecomendáveis para os trópicos, nós aceitamos o padrão? Note que ninguém nos diz que é melhor. Alguém diz que assim, parecendo-nos com nossos ídolos nós ficamos melhores. Dizem que isso nos melhora e que por isso devemos usar e mais ainda, devemos comprar, consumir. A indústria se atrela aos nossos ídolos como nós nos atrelamos a eles e isso é um fato. Tudo bem, o modelo daqui não foge a regra mundial, parece apenas um pouco mais piorado quando a indústria de ídolos é a que mais fatura independente do seu péssimo padrão de qualidade. E isso apavora.
Sem talento ou sem valor real e na maioria dos casos sem moral ou até educação, alguns dos nossos ídolos pré-fabricados são servidos frios e mal acabados enquanto a indústria nacional se lambuza. A sandália agora é a da dançarina despudorada, o cabelo é o do pagodeiro traficante enquanto a modelo, modelo, casa em castelo e arma barraco.
A nós, Homo Sapiens Sapiens, só nos falta agora ver a indústria oferecer o retrocesso de um modelo Cro-magnon.

Seu Oscar da farmácia.

Ela olhava o teto da farmácia como se não fosse com ela. O ar ingênuo de menina nova ignorava os impropérios. Mas lá, do alto da escada de correr, a frente das prateleiras forradas de remédios e a vista de todo mundo, seu Oscar bradava sua costumeira indignação. Afinal, eram as mudanças do tempo que ele não conseguira acompanhar, onde já se viu, ele, naquela idade, cavanhaque branco do tempo, farmacêutico graduado na escola de enfermagem de Faculdade Federal, um homem de bem, de valor, atender uma desavergonhice daquelas. E ela ali. Parada batendo o pé como se nada estivesse acontecendo.
- Vergonha. Falta de vergonha. Não tem cabimento. Se fosse minha filha eu botava interna no São José e não tinha saída nem Domingo de Ramos.
Em toda Itapagipe a fama de conservador de seu Oscar corria longe. Patrono do São Salvador, melhor padrão de regatas que a Bahia já viu, benemérito dos Romeiros do Senhor do Bomfim, Irmão Capuchinho e “Cadeira Cativa” no andor da procissão do Senhor Mortono fim do ano, ele era o que poderia se dizer um homem com idéias próprias sobre moral e bons costumes.
- Messalinas. Onde já se viu. E eu a me sujeitar um desplante desses.
Ninguém estranhava mais cenas como aquelas, afinal tava na TV fazia tempo. Até o Governo Federal e Estadual, já de muito dava guarida e recomendava a serventia do dispositivo. Era uma questão até de segurança, de proteção, de modernidade. Mas seu Oscar não. Modernidade os quintos do Judas que ele não ia ficar fazendo papel de besta se expondo moralmente, na farmácia que fora de seu pai, outro grande homem de bem, que Deus o tenha em boa guarda, atendendo a essas modernidades que aparecessem pensando que Rede Globo de Televisão pode mudar os costumes de quem sempre dormiu de pijamas, portou guarda-chuvas, escreveu a mão e não admitia o pouso do homem na lua, sendo isso tudo na verdade uma invenção da televisão cheia de truques do cinema americano, tudo para manter o Brasil e outros países do terceiro mundo, coisa que eles mesmo inventaram, essa história de terceiro mundo, mesmo prova disso é que ele, com sessenta e dois anos, nunca tinha ouvido falar em país do segundo mundo – taí mais uma prova até – e ele não achava graça nenhuma nisso.
- Coisa de quem tem doença. De quem não tem vergonha de guarda noturno nem também de chegar em casa de madrugada, com os sapatos no dedo, de mansinho e ainda dizer a mãe que tava com o pessoal conversando na esquina. Eu mesmo que não acreditava. Falta e cinta, tabica, falta de cinturão.
Ela? Impassível. Bolsa aberta, esperava apenas seu Oscar acabar o discurso e despachar logo de vez o pedido pra ela pagar e ir embora que o cara no Gurgel já tava buzinando. A farmácia podia vir abaixo que ela não se abalava. Deus era testemunha de que com vinte anos, já trabalhando e independente não iria dar ouvidos a ninguém. Muito menos a seu Oscar.
No caixa, pelo buraco no vidro numa última tentativa de envergonha-la e com isso dissuadi-la da idéia de adquirir tal produto, seu Oscar encostou a boca e lascou.
- E pra curar essa gonorréia não vai querer nada não?
Impassível, ela olhou nos olhos do velho farmacêutico. E num misto de pena e benevolência suspirou.
- Seu Oscar, não são duas camisinhas. São duas caixas.

O tamanho do rabo alheio.

Acho que tudo começa mesmo é na nossa mais tenra idade quando ainda crianças uma vontade inexplicável clama de dentro da alma e a gente grita:
- Manhê!O Dinho ta metendo o dedo no nariz.
O que é que a gente esperava? Será que a gente achava que a mãe da gente iria largar tudo e viria dar uma surra no “Dinho” por conta do tal dedo no nariz? Que prazer mórbido seria este de ver o irmão ser espancado pela mãe por um ato tão banal? Não, não é nada disso. De certo se a mãe aparecesse, o que eu duvido, com um chinelo na mão pronta a atender as nossas expectativas, o primeiro sentimento seria o de arrependimento e o segundo seria o da defesa do próprio “Dinho”.
- Bate não mãe.
Mas no dia seguinte a vontade voltava. O tal prazer mórbido, a tesão de denunciar, de apontar a falha, o defeito, o erro. Isso falsamente faz da gente um pouco melhor do nos julgamos. – Vê? É ele e não eu quem está errando. Falhando, mentindo, traindo, seja lá o que for. – Mas não sou eu. Eu? Eu não. Fui eu quem apontou o erro, portanto eu não erro. Eu sou melhor. Errado. A gente erra sim, erra também. Todo mundo erra e reconhecer os próprios erros deveria ser humano.
Desumano é apontar um dedo imundo na direção de incautos e ver a “máquina” , também desumana, dar chineladas a torto e direito sem ver propósitos, avaliar os interesses envolvidos e o caráter de cada um.
“Macaco, olha teu rabo.” O ditado é ainda mais velho que o tamanho do “rabo” da gente. As falhas que apontamos na infância sem maldade aplicam-se como amálgama no caráter de cada um a depender do tamanho do “rabo”. Do último pedaço de bolo roubado na surdina, do jarro quebrado e omitido, das traquinagens inocentes às falcatruas espúrias, à corrupção e ao favorecimento ilícito gravita a lógica da boa conduta. A dialética dos princípios, a civilidade, a educação de berço, a retidão.
O alcagüete, o dedo duro, esse faz e fará parte do processo ainda por muitos séculos, o diabo é a denúncia vazia ou inútil. Ou útil?
- Mãe, o Dinho ta com o dedo no nariz. E se você bater nele eu vou poder meter o meu dedo, no meu nariz e ele vai estar errado se disser a você que eu tou tirando meleca porque, afinal, o nariz é meu e meleca é minha e mãe...Mãe? Pra que é esse chinelo?
Macaco, olha teu rabo.
Ou será que é preciso mesmo apurar o tamanho do rabo alheio uma vez que ninguém vai olhar para o próprio?
-Senhor presidente, senhores membros desta CPI, senhores e senhoras congressistas, queridos amigos da incorruptível imprensa nacional, aos quais recomendo que o meu lado direito é o meu melhor lado para fotografias, eu afirmo e confirmo, mesmo sem ter provas, que aquele que ocupa agora o trono ao invés de mim está deslavadamente metendo o meu dedo no meu nariz.
Será que não tem ninguém aí nesse país com um bom chinelo na mão?