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Menino besta cheio de sonhos aprisonado no corpo de um homem sóbrio e cheio de desejos.

Escolha a dose.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

O silêncio passa na cauda de um cometa.

O que Ludmila não queria era perder aquela referência. Ficaria um vazio certas horas quando a certeza de que ele realmente a amava não estivesse mais ali. Não que ela fizesse tanta questão assim, não era isso, moça bonita, inteligente e alegre o que não lhe faltava eram pretendentes que ousavam desafiar o veterano mais forte da escola na disputa por seus gracejos.
Ela tinha a ele e todos.
Muito antes mesmo, nos recreios, Ludmila já flutuava no pátio pulando corda a encher de sorrisos crianças e adultos, vivendo entre a menina e a moça, hora se exibia em olhares sensuais por sobre os ombros ossudos, hora se estatelava no chão em pega-pegas sem fim. Na boca a eterna promessa de um beijo futuro se mesclava a sua voz, a mais alta e de gargalhada mais estridente nos corredores vazios.
Ludmila era um encanto de se desejar.
O namoro de Ludmila e Airton aconteceu meio que por uma conseqüência desleal do código mais hipócrita do colégio: A menina mais bonita era sempre do garoto mais forte. Na época do começo, ela adorou isso e ele, por sua vez, achou formidável. Todas as outras meninas iriam passar o resto dos seus dias até a formatura morrendo de inveja dela. Todos os outros meninos e até alguns professores, passariam a olhá-lo com mais respeito e admiração. Foi assim quando Airton puxou o cabelo dela na fila da cantina e disse-lhe no ouvido o indefectível “Você quer namorar comigo?“, ela respondeu sem muito pensar:
Tá bom.
Airton gostava dela, gostava de possuí-la, de exibi-la, de saber que ela era dele. Ludmila gostava de Airton também, ele era forte, era bonito, com ele ao lado ela se sentiria protegida para sempre.
Namoraram o ano todo e o ano seguinte também.
Nas férias, Airton foi passar o verão na casa de parentes no Rio de Janeiro. Voltou bronzeado, usando brilhantina no cabelo, camisas de mangas dobradas e calçado numa botinha linda igual a que o Roberto Carlos usava, a calça mais justa ficara perfeita no seu corpo talhado na educação física e no futebol. Ele falava agora com um sotaque diferente, charmoso, sofisticado. Sotaque de carioca, uma delícia.
Airton tinha melhorado muito.
Ludmila, que ficara na mesma Rio Preto que nunca melhorava, também mudou. O verão a enchera de curvas, peitos, pelos e foram tantos os novos sonhos, diferentes dos que tinha antes, que Ludmila não teve como resistir à puberdade e por fim menstruou.
No primeiro dia do segundo semestre no Ginásio Estadual o casal era pura novidade. Andavam de mãos dadas, se abraçavam pra todos poderem ver e até davam beijos na boca, às escondidas dos severos sensores que patrulhavam a escola, sentados à beira do velho chafariz atrás do ginásio. No intervalo das aulas Gorete correu para encontrar a melhor amiga e de quem era a maior fã.
Amiga que coisa linda ver vocês dois, ai Deus que inveja, o Airton ta lindo amiga, que inveja, que inveja, mas inveja boa viu amiga? Gorete saltitava, falava e estourava bolas de chiclete lilás afastando a pesada franja negra dos olhos. E aí? O que você achou do nosso novo colega? Ele é até bonitinho, meio pálido sei lá, e muito cabeludo eu acho né? Meio magro também.
Tem menino novo na turma? Hum, eu nem reparei Gorete. Disse Ludmila em superioridade ainda rabiscando florezinhas em volta da foto de Ronnie Von colada à capa do caderno. Não vi mesmo. Concluiu.
Vira sim. Ludmila o avistara no momento em que cruzara a porta da sala de aula naquela mesma manhã e pelos próximos dias, sempre que possível, ela o acompanharia com olhar. Era magro sim, meio branquelo, muito cabelo talvez, mas era até bacana, ele não era um pão, mas tinha uma coisa diferente no jeito de olhar as pessoas. Danilo era o nome dele, boas notas, boas roupas, usava relógio e carregava mais livros do que os outros rapazes tinham coragem de exibir. E Danilo também tinha uma coisa diferente no jeito que olhava pra ela.
Amiga! Tiramos a sorte grande não foi? Caímos na mesma equipe do menino novo pra fazer o trabalho da feira de ciências. Gorete não se continha na mini-saia. Com um CDF daqueles na equipe tiramos dez amiga, com certeza.
Pela primeira vez na vida, Ludmila fora a todas as reuniões de equipe na casa dos colegas, a maquete do sistema solar estava ficando duca. Danilo era muito talentoso, pintara a superfície dos planetas em esferas de isopor, fios de seda as suspendiam até arames entortados num móbile lindo de movimentos orbitais elípticos. Mercúrio, Vênus, Terra, Marte, Júpiter, Saturno, Urano, Netuno e Plutão. E mais, havia também dependurado um cometa como aqueles de presépio, uma estrela com calda longa recortada e forrada a mão com papel laminado. Ela estava encantada e eles passaram a andar juntos vez por outra.
Domingo, na lanchonete, as amigas dividiam um sundae. Ludmila sussurrava.
Gorete, Danilo é papo firme sabe? Eu descobri um mundo todo novo com ele, amiga. Beatles, Caetano Veloso, eu escutei Bob Dylan e assisti La Dolce Vita de Fellini. Aí tem outra, saca só, ele falou que me leva pra conhecer Brasília quando o pai dele for lá. e chupou o sorvete da ponta dos dedos.
Ludi! Pelo amor de Deus! Você vai dar mancada com o Airton? Não acredito. Amiga se ele descobre que você gamou nesse menino ele te mata.
Era verdade. Airton e seus amigos andavam violentos sim. Brigas de gangues, rachas de lambretas, canivetes e socos-ingleses haviam entrado no seu universo.
Eu? Gamei nada menina. Danilo é só... diferente. E quer saber? Eu acho horrível aquele ar de fossa dele, aff. Eu gosto é de homão amiga! a gargalhada de Ludmila ecoou por toda esquina.
O semestre chegara ao fim e a feira de ciências marcava o fim do período. O trabalho nota dez, a maquete do sistema solar fora um sucesso. O único momento desagradável do evento foi quando a turma de Airton entrou no ginásio fazendo pilhéria e chacota dos alunos mais novos. Estouraram o vulcão, derramaram no chão as águas límpidas de um rio de Q-suco e jogavam futebol com Júpiter até quando Airton, ao bater os olhos no reluzente cometinha dependurado, saiu furioso em disparada pela porta entreaberta trombando num Cristo Redentor feito de papel machê.
Na manhã seguinte Ludmila chegou cedo a escola. Não havia decidido ainda o que fazer com relação a Danilo. Deus ele era feio, tinha espinhas e ela afinal era a mais certinha do ginásio. Airton era possessivo e ciumento, mas era bonito paca e era o que ela tinha nas mãos. Ela poderia até pensar umas coisas, mas não conseguiria falar nada, mesmo que quisesse. Afinal ela nunca fora muito boa com as palavras.
Não posso alimentar um sonho impossível numa pessoa que gosto se nem mesmo eu me dou o direito de também sonhar. Ludmila falava baixinho pra si mesma quando ouviu o grito de pavor.
Correu assustada, mais um grito vinha detrás da parede do ginásio. Alguns rapazes já se aglomeravam num círculo bem ao lado do chafariz. Uma faxineira chorava copiosamente. No chão, um corpo frio e ensangüentado. Danilo morrera também no silêncio, apertando na mão um cometa como aqueles de presépio, uma estrela com calda longa, recortada e forrada a mão com papel laminado e escrito nele com caneta esferográfica: Ludmila.
Ficaria um vazio certas horas quando a certeza de que ele realmente a amava não estivesse mais ali.

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