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Menino besta cheio de sonhos aprisonado no corpo de um homem sóbrio e cheio de desejos.

Escolha a dose.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Por consideração.

             Zora estava morta. Dentro do carro, voltando do enterro, com a vista ainda embotada pelas lágrimas, o velho Geo remexia o conteúdo da antiga caixa de charutos que lhe fora entregue na condição de parente. Dentro da caixa, trapos, poeira, algumas medalhas das vitórias nas regatas e uma carta de Zora para Carlão. Uma carta de Zora para Carlão.
- Carlos meu querido, você se foi, tenha certeza que ninguém nesse mundo está de fato preparado para tristeza da perda...
A emoção tomou conta do velho Geo e seus olhos se inundaram d´água enquanto suas lembranças o envolveram voltando no tempo. Geo tirou fora os óculos de aro grosso e abriu-se a tristeza.
Tristeza de verdade abatera-se sobre Zora, anos atrás, durante o período do luto. Perder Carlão assim, naquela idade, daquele jeito. Deus! Dava dó. Morena jambo, educada e prendada, Zora só tinha conhecido um homem na vida. Casara nova e fora feliz todos aqueles anos desde que se conheceram em Mar Grande, durante um veraneio lá pelos anos 70. Dava dó. Recém viúva, passou uns tempos magrinha, até enfeiara, coisa que se pensava impossível de acontecer.
Com Carlito, o único filho, estudando agronomia em Jaguaquara passara a viver só, na casa quase vazia. Missa, bordado, feira, mercado, fila da pensão e muita saudade. Fora triste aquele período.
Testemunha da primeira hora, o amigo Geo, nunca lhe faltara.
O nome dele era mesmo Gerlene, mas desde os tempos que moravam na Ribeira, o amigo Carlão ainda vivo, tratou de botar apelido nele. Dizia que Gerlene era nome de mulher ou, na melhor das hipóteses, nome de brilhantina. Solteirão convencido, boa pinta, sempre vivera ali por perto e fora o grande parceiro de Carlão. Da bola de gude as farras na juventude os dois eram inseparáveis. Foi até trabalhando na Fratelli-Vitta que os dois juntaram umas economias para comprar o táxi. TL 2 portas. O famoso imã: “Dirigido por mim e guiado por Deus”, exibindo de um lado o Senhor do Bomfim e do outro uma foto de Carlão, permanecera lá no painel depois da morte do parceiro. Comprara o imã na barraca do Cemitério das Quintas de Brotas no mesmo dia do enterro. Zora chorando, recortara a foto da carteira de reservista e ele colocou no imã.
Como na carta de Zora, Gerlene também passara pela dor da perda do amigo e tratara de dar sempre uma atenção à comadre. Parte da féria do táxi iria pra ela e era o táxi que bancava o afilhado Carlito em Jaguaquara. Era justo.
O fato é que mesmo finda a dor inicial e a vida ter retornado o seu curso natural, Gerlene jamais abandonara a família do parceiro. Sempre por perto, manteve firme o laço de amizade. Levava Zora ao supermercado, dentista, feira, banco e nos fins de semana tomava sua cervejinha na calçada da casa, de fora a janela do quarto de costura de Zora, batendo papo e ouvindo musica no rádio do velho TL 2 portas, o mesmo que levara Zora, anos atrás, ao Hospital da Sagrada Família quase parindo Carlito no banco de trás. Amigo do amigo, amigo da viúva.
- Eita Geo, saudades de dançar... Lembra a boate do Itapagipe? – Zora falava, mas não desgrudada o olho da costura.
- Eita Zora nem fale, agente remava pelo clube e entrava sem pagar. Bons tempos aqueles. Gerlene lembrava, lembrava de tudo. Mas lembrava também que durante todos aqueles anos desejara em silêncio a mulher do amigo morto. Silêncio doido, coração rasgado a cada beijo que testemunhara, a cada dança que invejara, a cada sorriso que não lhe fora destinado. O amigo, o parceiro o irmão Carlão, teria morrido antes da hora se tivesse sabido disso. Deus me livre! Nem Pensar.
Tantos anos de tanto silêncio haviam transformando Gerlene num quase monge. Sem mulheres, namoradas, nada. Estar perto de Zora lhe preenchia a alma. Zora que por sinal, não havia dito antes, já recuperara aquele velho brilho no olhar. Agora, Zora sorria o mesmo sorriso de menina, alto e largo. As saias rodadas que ela, Carlão, e ele em silêncio, tanto gostavam, voltaram ao dia-a-dia de Zora, ela já cantava baixinho estendendo roupa, tomava lá uns golinhos de cerveja e, principalmente, já não ia mais ao cemitério toda quinta-feira. Zora voltara a viver e com essa volta, Gerlene reavivava mais ainda sua eterna paixão.
Domingo na sacristia da Penha, Gerlene ouvia do pároco:
- Meu filho eu só sinto que o motivo que lhe trouxe aqui de volta à nossa igreja seja dessa natureza, mais fico contente por você ter me procurado. – padre Manoel Moreira tinha razão em reclamar, os fiéis estavam se afastando da Igreja da Penha.
- Me perdoe padre mais me diga de verdade: É pecado ou não? – Gerlene não teve a quem recorrer. Sempre achou que padre não podia entender de assuntos da carne mais ele iria se valer de quem?
- Meu filho, enquanto Carlos Augusto era vivo, era pecado. Desejavas a mulher do próximo. Mas queres saber? Deus já o tem em sua guarda agora, que mal mais há em sentires o que sentes? Vais a ela filho, abre-lhe o coração.
O velho TL 2 Portas passou a noite estacionado na ponta do Humaitá. Dentro, um Gerlene quase em pânico durante a noite insone.
- Padre fala e parece tão fácil, bonito, cheio de “esses” – resmungava baixinho – “Desejavas, queres, sentires, abre-lhe o coração...” Abre-lhe o coração o cacete. Zora me bota é pra correres tamanha sacanagem. Esses anos todos, ali, do lado... Ta doido! Dizer que a amo? – Ela ia ficar era puta da vida.
Mais uma vez a vida retomou seu caminho. Do ponto de táxis no Largo do Papagaio, Gerlene estava a um pulo de casa Zora e suas visitas e “ajudas” passaram a ser mais freqüentes.
- Deixa que eu lhe levo Zora. Que coisa! Vou lá deixar você pegar ônibus? – Quando o celular tocava e ele via o número dela largava até passageiro no meio da rua e corria para a Ribeira.
A tortura aumentava a cada dia. Ver Zora era risco de enfarte. No TL sem o banco do carona, pra baixo e pra cima com ela, o cruza descruza de pernas de Zora matava Gerlene. Ali, dentro do táxi. Ao alcance de suas mãos.
– Diacho! O que é que falo? Como é que eu digo? – Ah o cheiro de Zora. O mesmo cheiro que significara traição e pecado agora se mostrava promessa e desejo.
- Me deixa aqui Geo que eu vou andando o resto do caminho senão você vai ter que dar um volta enorme. - Zora pedia.
Deixava nada, Gerlene queria mais era aproveitar cada segundo da companhia dela. Levava na porta.
Domingo de tarde, Faustão na TV. Zora ficava de hobby. Gerlene era de casa não tinha problema não. Tinha sim. Gerlene na verdade mal se continha nas bermudas. O hobby transparente e puído deixava as curvas de Zora a mostra e ele, vez por outra, culpando a cerveja, corria no banheiro do quintal e tentava esfriar os ânimos no bidê. Pura tortura. Isso tinha de acabar, ele tinha de falar com ela.
- “...abre teu coração meu filho...” Nhé, nhé, nhé... fácil né? Padre sabe porra nenhuma... – Roia a cabeça de Gerlene enquanto resfriava as partes.
Terça-feira na volta do supermercado ele quase falou.
- Sabe Zora é que eu queria...
- Queria o que meu irmão? Fala.
Irmão? Irmão? Aquilo atingiu Gerlene em cheio.
- Queria... – Gerlene balbuciava – Queria levar as compras lá dentro pra aproveitar e ir no banheiro.
Desta vez foi a cabeça que ele precisou esfriar na pia. Tinha de falar. Voltou pra sala.
- Zora, companheira velha, eu quero que você saiba. – Gerlene não encontrava o jeito – Bom é que eu, eu gosto muito de você Zora. E que... bom, se você precisar...
- Eu sei, eu sei, eu sei companheiro. Sei que conto com você e também te gosto muito meu amigo. – Gostava? A cabeça de Gerlene deu uma volta e meia, Zora segurou-lhe a braço e continuou. – Você sabe que eu te gosto de você tanto quanto gostava o Carlão.
- É, sei. – Disse ele. E saiu.
Companheira? Que merda. Isso é lá jeito de chamar Zora? Ridículo. Claro que tinha que acabar era ela se lembrando do Carlão. Companheira o cacete.
No carro, Gerlene desgrudou o retrato do amigo do painel. O sorriso de Carlão na foto amarelada, parecia irônico.
- Fala pra mim meu amigo, fala. Fala como é que eu faço. Você conhece ela, melhor que eu, o que é que eu digo? Droga, eu não posso chegar e falar Zora meu amor, eu sempre te amei. Vou chegar de cara limpa e falar: Comadre, se algum dia você pensar em voltar a fazer ousadia, por favor, me dê à preferência por consideração? Ta doido? Me ajuda meu irmão? – Gerlene perguntava, mas da foto, Carlão não respondia como não respondera também todas as outras vezes anteriores.
Não tinha jeito, os meses se passavam e Gerlene já havia pensado em todas as alternativas: Flores, sorvete na Ribeira, praia, uma carta talvez. Nada, nada lhe daria a segurança de que Zora não iria sofrer com a confiança traída e acabar até com a amizade deles. E ele faria tudo, qualquer coisa pra que ela não sofresse, mesmo que isso significasse levar seu segredo para o túmulo.
E foi um túmulo que pois fim ao sofrimento e as dúvidas de Gerlene que o perseguiram por todos aqueles anos. Zora partira. Depois de algumas semanas no hospital tendo o velho companheiro aos pés da cama, velando seu padecer, o câncer a consumiu e ela morreu dormindo. E fora a pedido dele que Carlito concordara em sepultá-la no mesmo mausoléu ao lado de Carlão, nas Quintas. Fora ali, sobre os restos do caixão de Carlão que alguém encontrou a antiga caixa de charutos contendo a carta de viúva Zora para o marido morto e a entregou a Gerlene.
Como a chuva que lambia o pára-brisas, as lembranças lavaram os olhos do velho Geo e ele voltou à realidade presente. Carlito dirigia enquanto seu velho padrinho continuou a ler a carta que Zora deixara na caixa de charutos para Carlão.
-“... ninguém nesse mundo está de fato preparado para tristeza da perda. – a carta continuava – Sei que os próximos anos serão de dor, tristeza e saudades, pois você foi um grande companheiro e pai exemplar. – Com as mãos trêmulas, o velho Geo limpou as lentes dos óculos. – Eu, – Zora dizia na carta. – talvez, é que não tenha merecido seu amor e sua dedicação. Meu querido Carlos, mesmo tendo me mantido fiel a você todos esses anos, nunca tive a coragem de lhe confessar essa terrível verdade e por isso só o faço agora depois de sua morte. Carlão, dentro do meu peito meu coração o traia e jamais encontrei uma forma de lhe revelar esse segredo. Na verdade Carlão, eu sempre amei a Gerlene. Era com ele que eu queria ter me casado mesmo sabendo que meu amor não era correspondido. Portanto lhe peço perdão agora que você se foi, mas confesso também que se Gerlene um dia vier a me querer, me entregarei nos braços dele.”
E choveu, choveu, choveu.

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