Nota:

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Menino besta cheio de sonhos aprisonado no corpo de um homem sóbrio e cheio de desejos.

Escolha a dose.

sexta-feira, 26 de março de 2010

Por um trem

Era no mesmo vestido de anarruga que ela atravessava a praça todos dias à mesma hora. Luvinhas de renda branca, chapéu de palhinha e sapatos de fivela. Sorria e caminhava, como caminhava sorrindo sempre, todos os dias.
Ao chegar, subiria, cerimoniosamente, os degráus da frente como se fossem os de uma catedral, atravessaria o saguão vazio, ainda repleto de bancos longos de madeira polida e após a porta sempre aberta, alcançaria a plataforma. Ali ela esperaria. Ali não sorriria. Ali, ela olharia serena o horizonte remoto até onde a vista alcançava e os trilhos se encontravam.
O vento, vez por outra, faria bater as janelas despidas de vidros e lembranças, levantaria o pó acumulado ao passar dos tempos e removeria seus cabelos pretos e anelados, soltos aos ombros.
Nada a faria mudar a impávida expressão imersa em espectativa. Seriam dois olhos negros no horizonte, duas pintas no rosto e dois sapatos de fivela e dois trilhos vazios a se encontrar no mesmo horizonte.
Após horas de espera, ela retornaria no caminho regresso sob o olhar de toda a cidade.
Niguém nunca soube se ela esperava alguém chegar ou se esperava por um trem que a levasse dali. Havia anos que a grama cobrira parte dos velhos trilhos, havia anos que o enorme relógio estava parado, havia eras que ali, não mais passavam trens.
Aos fins de um Março qualquer, a mesma cidade esquecida às beiras da ferrovia, a viu passar no mesmo vestido de anarruga. Aos fins daquela tarde naquele Março qualquer, ela não retornou da estaçao, ninguém nunca mais a viu e nem mesmo o vento passou pelos velhos trilhos.

terça-feira, 16 de março de 2010

segunda-feira, 15 de março de 2010

Se refaz

Refazer-se de um fracasso muitas vezes é mais fácil do que SE construir a partir do sucesso.

RAPIDINHO

Não mas olha, rapidinho te falo, não sei se são aquelas pernas, porque sabe ele tem umas pernas lindas mesmo e tem o jeito todo, sei lá, assim grandão meio forte mas não é fortão , sarado sabe, assim de academia? De academia não, não de academia não. Ele é sólido. Isso, parece sólido, uma coisa segura dura mas sem ser dura, acho que é sólido mesmo o que eu estou querendo falar. Mas parece macio se a pessoa apertar. Ele é assim meio bruto, mas não me entenda mal, é bruto na aparência só. Não é bruto tipo grosso, rude, é bruto meio que animal assim coisa de bicho. Entenda: Sabe aqueles cachorrões enormes que dá medo até? Daqueles sim, que se pegar a gente mata numa mordida? Pois é desse jeito, mas que a gente olha e morre de vontade de abraçar? Ele é assim mesmo. Tem mãozão, bração, pernão, assim todo ão. Sim, quase ia esquecendo, a voz, ai Deus a voz desse homem. Imagina aquelas vozes de homem que a pessoa fica assim pensando “Ave Maria que voz que esse homem tem”? Sabe? Tipo locutor de rádio? De, de... propaganda de banco tá me entendendo? Que se falar inglês você surta? Tou te falando é assim mesmo a dele. Nunquinha que eu me aguento falar no telefone com ele. Ai, chega suei agora, pega aqui na minha mão pra você ver. Mas olha, pior é que não é nem isso tudo que mexe comigo não, até porque homem tipo capa de revista gay eu nem curto, o lance é que ele é carinhoso. Não , não é bem carinhoso, até porque eu não sei mas acho que ele é carinhoso, ele é assim ó, deixa ver, ele é a-ten-ci-o-so. É, é atencioso a palavra. Ele olha de um jeito como quem se preocupa se a gente está bem ou não entende? Assim tipo vem com aquela voz toda e fala “Tudo bem?” mas é um tudo bem de quem quer mesmo saber se você está bem percebe? Ele olha dentro do olho, assim dentro da gente, todo grandão, roupa boa, cabelo arrumado, sapato correto, relógio correto, cinto correto, um puta de um bom gosto que mata. Aqui, escuta só, ai ele vem e fala: “Tudo bem?”. Porra, é “O cara” perguntando se você tá mesmo bem entende? Cê gela. Assim, quer dizer, eu mesma gelo, tipo, fico pensando assim: “Presta atenção que merda você vai falar mulher”. Não, é sério, ve só, porque se eu falo “Tou”, assim tou e pronto, vou ficar parecendo uma retardada né? E se eu falar “Olha na verdade eu tou meio mais ou menos e tal...” ai fica mais retardada ainda, pura monga, falando meu problemas todos sacou? E se eu parar pra pensar muito e ficar só ali, toda lesa, olhando pra ele e não falar nada é pior ainda.
Tem dias de festa que a gente se encontra e ele abraça, puta que o pariu, não, desculpa eu falar assim, mas é lasca mesmo. O cara abraça você toda. Fica você toda ali dentro do peito dele que dá até pra sentir o coração da gente saindo pela boca. Abraço que podia ser besta tipo abraço de cunhado entende? Mas não, é abraço mesmo de homem todo homem, assim, abraço de aeroporto ou de enterro, não sei se você tá me entendendo. E sabe o pior, ou o melhor se lá, é o perfume dele. Nossa é um cheiro assim, assim, assim de madeira, cheiro de canela, um cheiro de pessoa madura, equilibrada como se ele tivesse o mundo nas mãos e não ligasse pra isso sabe? Sei que não é só perfume porque quando mistura com o cheiro da pele muda né? Ou quando a pessoa tá bebendo ou fumando e mistura tudo sabe? Sei que eu fico depois cheirando meus braços e minha blusa ainda com o cheiro dele. É uma coisa viu? Vou te contar, que coisa isso de cheiro. A pessoa fica logo pensando bobagem. Mas olha, agora pega o cheiro, o bom gosto, a mão, a voz, pega até o “Tudo bem?”, pega tudo junto e poe numa cara de safado daqueles bem sem vergonha, é, do jeito que você tá pensando ai mesmo e me fala: Dá pra não querer?
Êita amiga, pera, ele entrou no msn aqui, depois te falo, agora vou falar com ele, se ele quiser né? Ai meu Deus ele tá digitando. Ele é lindo não é? Tchau amiga depois se fala, beijo. Ei, olha só, ai amiga sabe o que ele falou aqui? Eu sabia, ele escreveu assim: “Tudo bem?”

sexta-feira, 5 de março de 2010

Chover

Sendo vento, argumentei à chuva.
E soprei e soprei e soprei.
E a chuva não parou.
Quem para é o vento
ou para a chuva não há argumento?
Que chova então.
Também choverei em vão.

terça-feira, 2 de março de 2010

Pensar inseto

Era uma parede não uma saída. Não sei nem, se até, foi mesmo por querer se esbarrar que ela se esbarrou na primeira vez. Mas o fato é que ela se esbarrou na parede sim. E caiu, percorreu num voo sem movimento horizontal toda a extensão fria e branca do obstáculo até pousar as patas no chão. E lá, por instantes, pareceu refletir, conjecturar, calcular e tentar solucionar o enígma do porque não ir adiante, pareceu pensar até. Até que voou outra vez erguendo-se do solo como se peso algum houvesse. Agora sim acharia a saída.
O inseto ergueu-se com tanta determinação que ao vê-lo abandonar o chão, de tacos de madeira, parecia que seus cálculos de seguir viagem o fariam virar-se. Sim, cento e oitenta graus, parecia que a libélula, ao pensar, entendera que era necessário uma reviravolta nos seus planos pois às costas estaria sua “liberdade” rumo ao centro da sala onde estariam a sala em si, móveis, luzes e novos lugares a explorar, novas janelas e portas e outras rotas. Caminhos, destinos, opções, estava tudo ali à apenas cento e oitenta graus. Era só virar e seguir.
Mas outra vez não. O tre-le-le das asas e a total falta de deslocamento apontavam a decisão ilógica de ainda tentar transpor a fria e impassível parede branca. Voava em diagonais semi-circulares num vai-e-vem frenético, ruidoso e de malfadado sucesso, de encontro a solidez impávida do obstáculo imobiliário. Uma parede, que branca era, por refletir a luz da sala.
 -Olha diabos inseto! É uma parede. Vira-te e segue tua sina incerta mas sina, e te desiste de enfrentar o sólido fim-de-caminho que se aponta em tal direção. Tenta outra.
A minha erudição do berro não a fez dissuadir-se, visto que, fez-se em voos repetidos por horas e horas sempre no mesmo caminho obstaculado. Era um bater de asas em tre-le-le e novo pousar no chão de tacos de madeira.
Ao seu lado, ali também em silêncio, uma porta de correr entreaberta mostrava a noite estrelada, adiante à varanda, exibindo o horizonte de luzes meio ao escuro à seus pés. Mas era noite. Jamais naquele pensar inseto seria aquele escuro, o símbolo da liberdade para quem busca a luz, mesmo que apenas refletida, no branco de uma parede intransponível.
Por toda a noite a libélula tentou transpor a parede iluminada, só com o amanhecer e o sol, quando a porta aberta se refez em luz de dia, foi que o animal tornou, apenas noventa graus, e voou liberto num destino incerto, mas seu, sem mais se iludir por reflexos ou trapaças de quem não percebe que por vezes é na escuridão, e não na luz imaginária, que se encontra a liberdade futura.