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Menino besta cheio de sonhos aprisonado no corpo de um homem sóbrio e cheio de desejos.

Escolha a dose.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Muros, telhados e quintais.

Já era difícil imaginar que eu voltaria ali à mesma rua onde cresci. A infância e a adolescência passadas a duas ou três casas dali pareciam agora tão distantes. Mesmo depois transferido de volta a Salvador há tantos anos, para na divisão de homicídios da Policia Civil, ainda não havia voltado ao meu bairro. O subúrbio distante e pobre agora assistia a suas casas serem demolidas dando lugar a um parque industrial. Tudo havia mudado. Sumiram a padaria de Dona Fina, o velho abrigo da parada de bondes, as casas gêmeas e até o imaculado Terreiro de Candomblé de Mãe Hilná. Eu não poderia sequer precisar o local exato do agradável sobrado onde vivi e que ainda emoldurava algumas das minhas lembranças.
Mas o chamado assim o exigia. Os engenheiros da obra ao cavar umas valas para cano, deram com uma ossada enterrada à sombra das árvores, do que fora o quintal daquele bangalô agora reduzido a escombros. A principio não havia muito que fazer. Fotos, exames superficiais, recolher o material e despachar para perícia. A natureza já limpara os ossos com a costumeira perfeição. Os colegas, calejados nos anos de lida diária com a violência urbana, pareciam indiferentes ao sorriso macabro que ainda na terra, nos fitava em silêncio. Apenas um velho sargento falador, com ares de detetive de filmes americanos, remexia os restos mortais indignados.
- Gente maluca! Nunca ouviram falar de cemitério não? Onde já se viu enterrar parente no quintal? Esse era da família, olha aqui, enterraram com jeito e cuidado. É muito, querer manter uma pessoa por perto mesmo depois de morta né?
Mas a voz do sargento foi sumindo, o barulho estridente da serra elétrica e as ritmadas marteladas na obra do prédio sumiram dos meus ouvidos. Olhei para cima e o mundo parou. Nas copas daquelas mangueiras vozes antigas falavam dentro da minha cabeça. Aquelas mangueiras. O quintal. Passarinhos ainda. O cheiro de café recém coado voltava nas narinas. Outra vez passarinhos, as mangas, de manhã, minha rua. Era cedo! Muros, telhados e quintais, tudo voltou à memória e eu era um menino outra vez.
Partindo do alto dos telhados do quarto de passar roupa, nos fundos lá de casa, eu podia percorrer todos os quintais do quarteirão, pulando dos muros para árvores, das árvores para os telhados. As casas eram coladas, as construções nos quintais, normalmente quartos de empregados, garagens e depósitos, uniam-se como se unissem os laços da boa vizinhança.
- Menino desce daí. Você vai quebra a cabeça. - Guiomar, misto de babá e lavadeira, negra de cabeça alva como os lençóis que quarava, nunca me fez descer dos telhados más nunca deixou de tentar.
Ali eu era índio nas montanhas, Crusoé ilhado do mundo, piloto de avião, rei das selvas. Ali eu era espião. Dali dos altos eu via tudo. E a todos espiava pós a grande aventura diária era participar anônimo das vidas nos quintais alheios. Seu Arlindo sempre de pijamas a contar dinheiros antigos, Dr Marbak comendo frutas na varanda dos fundos vestido num hobby de chambre mesmo nos janeiros mais quentes, enquanto o grito de Tia Carmem acordando os filhos para a escola ecoavam pela casa, seu Fraga, da PHILIPS, trocando o alpiste dos canários, fingia não ver quando me esgueirava pelo muro de “comogól” e então, finalmente, ganhava as mangueiras da casa do espanhol.
Meu paraíso, o quintal do espanhol, era lindo e, estudando à tarde, eu tinha toda a manhã para viver o seu cotidiano do alto dos galhos. Os canteiros bem cuidados de Dona Dolores explodiam nas cores dos mais diferentes tipos de rosa. Em pequenos caquinhos de barro cheios de terra preta, mudas e mais mudas de plantinhas pareciam promessas de sombra, frutos e novas flores. Galinhas, patos e marrecos ciscavam nos matos removendo a terra e bebericavam a água fresca da bica. Bom, a bica na verdade, não passava de um cano de ferro entortado que, mesmo arrolhado e amarrado de pano e pedaço de câmara de ar de bicicleta, pingava água nos seus pés. Aquele cano era o centro de toda a minha atenção. Ali Edivirgens lavava roupa.
Quando o cheiro de terra molhada se misturava com o café coando era sinal que o dia ia começar na casa do espanhol, que aliás, nunca era visto da segunda a sábado. Ele saia muito cedo para abrir a confeitaria no Comércio e só voltara lá pela madrugada. Vida dura daquele pobre homem. Poucas alegrias, nenhum prazer. Da confeitaria pra casa, de casa pra confeitaria. Devia ser um homem triste o espanhol.
Dentro de alguns minutos o casal de filhos sairia para a escola, fardados e engomados, tangidos por Dona Dolores, Janelinha, que havia ganhado o apelido ao perder os dentes posteriores, sempre correndo e Luisa, linda, branca e dona dos olhos verdes mais cobiçados do bairro, um pouco mais preguiçosa. A partir daí, a manhã era minha.
Tamborilando na velha bacia de alumínio presa ao sovaco e com um balde de roupa suja na cabeça e cabrocha viria até a bica e começaria o espetáculo. Agachada de pernas abertas com a bacia entre elas, Eduvirgens figiria uma indiferença manhosa mas ela sabia que eu estava ali. Sabia que despertava coisas dentro de mim, coisas que naquela idade, eu ainda não saberia explicar.
Meu Coração disparava ao ver a espuma que escorria por entre suas coxas. Por vezes, quando juntava um pouco d’água com as mãos e refrescava o próprio colo, a visão dos peitos miúdos colados ao vestido molhado fazia minhas mãos apertarem firmemente os galhos da mangueira evitando despencar lá de cima. Eduvigens sabia mesmo que eu estava ali e sabendo disso, saboreava a provocação. Ela cantaria sucessos da rádio por toda a manhã e depois de muito esfregar, enxaguar, torce e dependurar, um último balde d’água derramado lentamente sobre a cabeça a livraria do resto de sabão e suor refrescando-lhe o corpo. Essa imagem queimaria o meu corpo de menino por todo o dia.
Essa “espionice” platônica se repetiu até um certo Domingo. Domingo fatídico, onde ao invés de permanecer na cama rolando e aproveitando não ter minha mãe no meu pé com o tradicional “levanta menino vai caçar o que fazer”, eu, sem o menor motivo, levantara e fora espionar o quintal do espanhol. Eu sabia que não havia nada pra ver lá aos Domingos. Dona Dolores estaria na missa com as crianças, o espanhol aproveitando o último dia de descanso para dormir um pouco mais e, principalmente, Eduvigens não lavaria roupa. Lá chegando tudo isso teria sido confirmado se não fossem os curiosos sons que vinham do quarto de Eduvigens.
Dos galhos para o muro e do muro para o telhado das dependências, nos fundos do terreno foi a parte fácil. Levantar algumas telhas que me permitissem olhar para dentro do pequeno cubículo é que exigiu a perícia de um verdadeiro espião.
Minhas pernas estremeceram com o que vi. Parecia que o mundo inteiro podia ouvir meu coração batendo. Sobre o velho colchão de molas que rangia, Eduvirgens e o espanhol faziam como faziam os cães lá pelas ruas. Só que não latiam, estavam suados, cansados e felizes. Aquilo era novo, estranho e diferente, mas deveria ser muito bom.
- Vem meu galego, vem. Me come, me come. – Eduvigens falava baixinho.
As molas do colchão pareciam partir-se com o movimento mais intenso do casal enquanto o vai e vem ritmado aumentava de intensidade. – Mais rápido, mais rápido, mais rápido. – Gemendo e sorrindo o espanhol despencou o corpo sobre Eduvigens. Corri dali. E foi certamente um Anjo da Guarda quem guiou meus pés pelos telhados, muros e galhos pos eu nada vi no caminho até que vomitei sobre o viveiro de periquitos de seu Fraga. Aquele da PHILIPS.
Não sei quanto tempo depois retomei minhas aventuras de espião. Mais sei que a partir daquele dia, as manhãs de Domingo passaram a ser as mais emocionantes. Eu já me acostumara à cena testemunhada apenas por mim e uns poucos posters de artistas pregados pelas paredes do quartinho de Eduvigens. Diante do prazer daqueles amantes secretos, sorriamos eu, Roberto Carlos, Jerry Adriani e Wanderley Cardoso.
Aquele era um Domingo de Páscoa, lembro sim, o espanhol havia trazido ovinhos de chocolate da confeitaria e Eduvigens, ainda nua, chupava os dedos lambuzados enquanto ameaçava.
- Vou me embora sim galego. Desse jeito não quero mais.
- Não faz isso minha negrinha. Se você me deixa eu morro, você é minha única alegria. – O espanhol chorava como criança. Eu sabia como era, eu quando chorava, chorava daquele jeito.
- Vou sim galego. Ou então cê larga ela, manda ela vortá pra Ispanha, se livra dela, sei lá. Feito quenga é que eu não quero mais. – E trancou-se no banheiro enquanto o espanhol chorava no pé da porta e de joelhos ainda choramingando repetia.
- Eu dou um jeito neguinha, eu dou um jeito, mas você não me deixa nunca não. Teu lugar é aqui comigo nesse meu quintal.
Nos meus pensamentos os anos que passavam sempre lentos naquela vidinha de subúrbio voavam agora diante dos meus olhos. O índio, o piloto e o espião deram lugar à turma da esquina, ao cigarro escondido, a cervejinha, namoradas, o sonho do próprio carro, trabalho, faculdade. Eu cresci outra vez na minha memória.
Os sons voltavam, o barulho da obra, da serra elétrica, as marteladas e a voz do sargento, que ai a minha frente enfrentado a pilha de escombros, carregando os sacos plásticos negros. Eles continham o produto fúnebre do desejo de dois amantes. Caso encerrado.
- Depois de mandar pro IML tou liberado né doutor?
Liberei. Tinha ido com meu carro e ainda queria dar umas voltas pelo bairro. Novas lembranças talvez ajudassem. No fim da rua as últimas casas resistiam congeladas no tempo. E ainda como testemunhas do tempo lá estava, como sempre estiveram, Tia Lurdes e Dona Áurea, cunhadas inseparáveis sentadas à porta de casa indiferentes aos caminhões, máquinas e operários que pela rua, tomaram o lugar das crianças com peões, arraias, bolas de gude e o ir e vir dos vendedores ambulantes. Parei o carro e desci.
- Estão lembradas de mim? – Perguntei.
Tia Lurdes fez um bico torcendo o nariz e foi Dona Áurea, mesmo visivelmente vitimada por um derrame que gritou.
- Menino! É o filho de Dadinha, Lurdes! Entra menino, vem merendar.
E teria sido então apenas um tarde de lembranças, bolinhos, estórias engraçadas e dramas pessoais se o cheiro do café que Tia Ludes coava não tivesse feito eu me lembrar.
- Ô tia, a senhora lembra quando foi que Dona Dolores morreu?
- A espanhola? Morreu não menino, aquilo tem uma saúde de ferro, quem morreu foi o velho, eles ainda moravam ali. Eu fui pro enterro no Campo Santo. Pobre homem morreu como viveu: Triste e caladão. Logo depois Dolores foi morar na cidade. Janelinha teve aqui outro dia pra dizer que vendeu a casa herdada, foi ele quem me contou sabe? Contou que o espanhol morreu de tristeza depois de passar um mês sem dizer uma palavra. Morreu um mês depois que a negrinha Eduvigens desapareceu sem nem levar as malas.
Só então me dei conta que o espanhol cumprira a promessa feita a Eduvigens e ela de fato, nunca o deixara.

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