Seu Manuel era leiteiro. Isso mesmo: Leiteiro. Coisa do tempo em que leite era entregue nas portas, derramado de tonéis de alumínio nas jarras levadas por ávidos clientes no amanhecer suburbano. A cena era bucólica sim. Aos sons de Papa-capins, Tizius e Sabiás, parava à porta das casas um velho Ford, verde e preto, tipo perua, donde sairia um também velho senhor, cabelos brancos raspados à máquina número dois, cinto de couro roto atado por milagre à cintura, velhas botinas cansadas, camisa de quadros sertanejos e a exibir uma suspeita barba branca, sempre por fazer, como se aquele homem repousasse o queixo em farinha alva todas as manhãs.
Seu Manuel fedia. Fedia muito ao leite azedado e impregnado nas poucas vestes dia após dia. Enquanto moscas se açoitavam nos vidros da perua, na tentativa inglória de um repasto matinal, o diesel queimado, o leite e seu Manuel em si, agrediam a suave e gentil brisa de uma manhã pueril ao som de passarinhos. No fundo era repugnante. Mas, Seu Manuel sorriria e isso, além de apagar o incômodo, encheria o ar de alegria.
– Bom dia rapaziada da canela suja! – exclamava como se pela primeira vez o fizesse.
Nós, garotos simples e mal mimados, que sentados aos muros aguardávamos o leiteiro todas as manhãs, sorriamos de volta e em algazarra, o cercávamos de mimos como se ele fizesse chover Drops Ducora.
– Quantos litros quer a mamãe hoje? – perguntava – Foram bem nos testes de matemática? Menino andas a matar passarinhos de estilingue? Opa! Não lavas bem estas orelhas ó putinho? Tu ralhastes com tua irmã ainda ontem pimpolho?
Seu Manuel parecia adivinhar o nosso modesto cotidiano com uma precisão de quiromante. Como ele sabia de todas aquelas coisas? O velho português era um adivinho? Sorria e olhava nos olhos da gente, mais ainda, olhava dentro da gente. Seu Manuel sabia nossos segredos. Todos eles.
Só nós, garotos espertos, pré-amadurecidos na necessidade da sobrevivência, tínhamos a resposta: Seu Manuel fingia ser leiteiro, aquilo era um truque dele. Mesclado em todo aquele quadro desagradável de cheiros, moscas e estocadas nos nossos segredos, pois, até mesmo sabendo que de leite mesmo nenhum de nós gostava, ele disfarçava.
O segredo real era o nosso, todos nós sabíamos e não revelávamos: Seu Manuel era na verdade Papai-Noel, que se disfarçava de leiteiro para nos testar durante todo o ano na espera de uma melhor avaliação, para fazer justiça na decisão final a cada Dezembro: Receber ou não, o presente esperado.
Cínicos, sempre tratamos bem Seu Manuel. E sempre fomos bem avaliados, pois mesmo modestos, nunca nos faltaram presentes no Natal.
Cresci. Crescemos todos não? Não sei bem.
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