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Menino besta cheio de sonhos aprisonado no corpo de um homem sóbrio e cheio de desejos.

Escolha a dose.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Lições

   Seu Manuel era leiteiro. Isso mesmo: Leiteiro. Coisa do tempo em que leite era entregue nas portas, derramado de tonéis de alumínio nas jarras levadas por ávidos clientes no amanhecer suburbano. A cena era bucólica sim. Aos sons de Papa-capins, Tizius e Sabiás, parava à porta das casas um velho Ford, verde e preto, tipo perua, donde sairia um também velho senhor, cabelos brancos raspados à máquina número dois, cinto de couro roto atado por milagre à cintura, velhas botinas cansadas, camisa de quadros sertanejos e a exibir uma suspeita barba branca, sempre por fazer, como se aquele homem repousasse o queixo em farinha alva todas as manhãs.
   Seu Manuel fedia. Fedia muito ao leite azedado e impregnado nas poucas vestes dia após dia. Enquanto moscas se açoitavam nos vidros da perua, na tentativa inglória de um repasto matinal, o diesel queimado, o leite e seu Manuel em si, agrediam a suave e gentil brisa de uma manhã pueril ao som de passarinhos. No fundo era repugnante. Mas, Seu Manuel sorriria e isso, além de apagar o incômodo, encheria o ar de alegria.
   – Bom dia rapaziada da canela suja! – exclamava como se pela primeira vez o fizesse.
   Nós, garotos simples e mal mimados, que sentados aos muros aguardávamos o leiteiro todas as manhãs, sorriamos de volta e em algazarra, o cercávamos de mimos como se ele fizesse chover Drops Ducora.
   – Quantos litros quer a mamãe hoje? – perguntava – Foram bem nos testes de matemática? Menino andas a matar passarinhos de estilingue? Opa! Não lavas bem estas orelhas ó putinho? Tu ralhastes com tua irmã ainda ontem pimpolho?
   Seu Manuel parecia adivinhar o nosso modesto cotidiano com uma precisão de quiromante. Como ele sabia de todas aquelas coisas? O velho português era um adivinho? Sorria e olhava nos olhos da gente, mais ainda, olhava dentro da gente. Seu Manuel sabia nossos segredos. Todos eles.
   Só nós, garotos espertos, pré-amadurecidos na necessidade da sobrevivência, tínhamos a resposta: Seu Manuel fingia ser leiteiro, aquilo era um truque dele. Mesclado em todo aquele quadro desagradável de cheiros, moscas e estocadas nos nossos segredos, pois, até mesmo sabendo que de leite mesmo nenhum de nós gostava, ele disfarçava.
   O segredo real era o nosso, todos nós sabíamos e não revelávamos: Seu Manuel era na verdade Papai-Noel, que se disfarçava de leiteiro para nos testar durante todo o ano na espera de uma melhor avaliação, para fazer justiça na decisão final a cada Dezembro: Receber ou não, o presente esperado.
   Cínicos, sempre tratamos bem Seu Manuel. E sempre fomos bem avaliados, pois mesmo modestos, nunca nos faltaram presentes no Natal.
   Cresci. Crescemos todos não? Não sei bem.
   Também não sei bem em que momento da minha vida Seu Manuel desapareceu. Mas, ficou uma lição: Não a de não tratar bem a alguém a espera de ganhos, mas sim, a de vez por outra, me fazer passar por leiteiro.

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