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Menino besta cheio de sonhos aprisonado no corpo de um homem sóbrio e cheio de desejos.

Escolha a dose.

sábado, 9 de abril de 2011

Uma loira, um piloto e o que não tem conserto.


Levi sentia o gosto do sal na boca enquanto dirigia o Lincoln-Zephyr pelas curvas da State Highway 64 que contornava a orla na entrada de Mãmala Bay. 
Estava atrasado. 
O Lincoln de 5 anos tinha um novo motor, agora totalmente retificado, que fazia roncar suas 12 válvulas enquanto ele pisava fundo no acelerador. O carro deveria ter ficado pronto no dia anterior, mas o velho Jacob, pai de Levi e dono da oficina mecânica Jacob&Sons, não permitira a entrega do veículo sem antes lavá-lo e poli-lo. Jacob, rabino e mestre na arte da mecânica, nunca havia recebido uma reclamação dos seus serviços, desde que chegara ao arquipélago em 1930, muito menos da conduta e comportamento dos filhos que tão bem formara no ofício.
O Segundo Sargento O'Malley havia deixado claro – Se só vai ficar pronto amanhã, então você mesmo irá entregar o carro no Campo Hickam lá pelas 5 da tarde. O motorista responsável, cabo Lewis, estará à espera do novo comandante da base. Entregue o carro e suma de lá o mais rápido possível. Não quero que o novo chefe, mal chegando ao Havaí, descubra o quanto somos irresponsáveis com a manutenção por aqui.
Ele sabia perfeitamente que havia um certo tom preconceituoso nas palavras do irlandês O'Malley. Judeu, magro, feio e narigudo, Levi Gross não era um exemplo de galã de Hollywood. Já sentira na carne o anti-semitismo americano disfarçado no espírito libertário da democracia. O mesmo preconceito que ainda mantinha os militares negros, predestinados aos serviços de limpeza ou confinados nas cozinhas dos alojamentos das bases onde trabalhava. Sempre sereno, o mecânico ouviu as recomendações do sargento e desligou o telefone sem um murmúrio. Como de costume, enchera o velho e surrado macacão de trabalho, com todas as ferramentas possíveis de carregar. O bater das peças de metal espremidas nos bolsos, produzia uma percussão ritmada enquanto caminhava de volta ao polimento do Lincoln que agora dirigia com tanto prazer pela avenida costeira. Acompanhado pelas ferramentas Levi assoviou Song of the Volga Boatmen, sucesso recém laçado por Glenn Miller naquele Março de 1941.
Fazendo o Cabo Lewis espanar-se aos tapas, os pneus travados do carro, que iria servir ao novo comandante, encheram o ar com a poeira de terra seca na borda da pista de pouso em Hickam no mesmo instante em que um bombardeiro, Douglas B-18, tocava o solo da ilha de O’ahu. Após taxiar, a aeronave aproximou-se ruidosamente do Lincoln preto e abriu a porta lateral antes mesmo dos calços de rodas serem posicionados.
Afastado da cena por ordem do empoeirado cabo Lewis, Levi acendia um cigarro ao lado placa metálica gravada em homenagem a Horace Meek Hickam, pioneiro da aviação, cujo nome fora dado ao campo de pouso. A maioria dos jovens pilotos de caça americanos sonhava em pousar ali. Não pela pista, nem pela honraria à Hickam, mas pelos prazeres proporcionados pela vida num paraíso tropical.
Levi, desde pequeno, amara a mecânica. Era capaz de consertar qualquer coisa e sua maior paixão eram os motores à combustão, assim, na falta de militares mecânicos mais experientes, ele prestava serviços particulares na Base Aérea de Wheeler, ao norte da ilha e no campo Hickam, mantendo no ar as aeronaves de transporte e os caças de treinamento. Conhecedor da hierarquia militar e ciente da sua exclusão involuntária mantinha-se longe do glamour que envolvia a recepção do novo comandante. Apenas fumava e observava.
Levi tocava clarinete junto com amigos e fazia performances com grupos da marinha. A música era outra paixão e era a música que chamava sua atenção para o campo de pouso. Uma pequena banda do Marines Corps entoava Yellow Rose of Texas em homenagem ao recém-chegado. O texano William Bowie se orgulhava de ser descendente direto de James Bowie, herói do Álamo e não estava nada satisfeito com o novo posto no Havaí. Nascido na cidade de Garland preferia os campos e pradarias em detrimento dos coqueiros e praias de areias escaldantes, um comando daquele seria uma mancha no seu currículo, pois, na sua cabeça, naqueles idos, nada de importante aconteceria numa base aérea americana perdida numa ilha do pacífico a 3100 km de qualquer outro estado americano.
Após a irritada decida do Coronel William, pelas escadas postadas à porta do Douglas, Levi teve de limpar as grossas lentes dos óculos presas aos aros redondos na armação de tartaruga. A luz do pôr-do-sol parecia lhe ofuscar a vista.
Não era o sol.
Por trás das calças caqui e do jaleco marrom coberto de insígnias trajado pelo coronel, o semita via cintilar um brilho maior que o do sol.
De calças de cintura alta, longas e de bainhas largas, metida num casaquinho florido de golas altas e ombreiras, materializava-se para Levi a visão mais linda de toda a sua própria Israel. E o nome dela, saberia depois, era Anne Marie.
 Em Abril, Levi reparava as válvulas de um bombardeiro leve Martin B-12. Quando tateava o chão em busca de uma chave de boca, sentira a mão suave da garota, alguns anos mais nova do que ele, empunhando a 13/12 que tanto necessitava. Fora o primeiro contato.
Nem Wakea, deus havaiano do céu, nem Adonai o criador no judaísmo, nenhum deles jamais seriam capazes de dizer por que a esguia texana, loirinha de vinte e poucos anos, caíra de amores pelo judeu franzino. Talvez sua paixão pelo voar, pelas aeronaves que conhecia tão bem, talvez sua admiração pela perícia precisa das suas mãos, a sempre certeza, a segurança revelada, a calma, o jeito, a voz, o cheiro, a pele, a pena até talvez, quem sabe? O fato é que daquele Abril ao Novembro que viria o jovem casal enamorado, viveria um tórrido romance tropical, digno de Deborah Kerr e Burt Lancaster em A um Passo da Eternidade.
Levi, abençoado, reencontrara sua alma gêmea perdida em tantas outras encarnações. Mesmo isto não sendo um conceito judaico.
Fora lindo até o Novembro que chegara.
Na pista de Hickam, em formação, pousava uma esquadrilha de P-40C Kittyhawk e de um dos cockpits, recoberto de gotas condensadas, viria a solo um certo tenente aviador, piloto de caças, saído de uma nuvem do passado.
Agnelo Ricalldi, piloto, treinado em San Angelo – Texas, na Goodfellow Air Force Base, antigo comando do Coronel Bowie, havia sido transferido para a Polinésia, justamente para Hickam. Com ele, transferidos também, sonhos e planos de um amor perdido no passado sairiam daquela mesma nuvem.
Naquele instante, Anne Marie caminhava pelo aeródromo de mãos dadas com Levi sob o sol tropical, quando o Kittyhawk de Agnelo travou freios e abriu a carenagem. Instintivamente, Anne correu na direção do pátio de manobras e saltou nos braços do piloto que abria o pesado casaco de aviador em couro forrado de lã branca.
 Iniciava-se o pior dos Novembros na vida de Levi.
Agnelo sempre fora ciumento, de sangue latino e passional, radicalizava o pensar e no pensar, radicalizara o seu amar por Anne Marie quando a amara. Foi por isso que quando o viúvo, coronel Bowie, deixou o Texas seguindo carreira e arrastando a filha de comando em comando, Agnelo sentira que não seria prudente manter seu coração pousado no amor de Anne Marie.
Nos tempos que se sucederam à separação, Agnelo não se sentia seguro. Anne era linda. Cobrava-lhe o amor em suas cartas, fazia perguntas, queria provas, respostas, queria saciar sua sede de segurança num amor alimentado à distância e que por fim definharia.
Anne Maria tinha sim tido, de base em base, um ou outro romance de ocasião. Não poderia negar, mas, não precisava afirmar também. Na cultura de que meias mentiras são meias verdades, deixara o tempo cuidar de Agnelo.
Independente de tudo e sem saber o que se passava Levi só tinha uma certeza: Era o pior Novembro de sua vida. Ficara áspero com Anne. Amizade? Não, não lhe bastava. Ela, sem saber como agir, mentia para ele. O procurava nos dias de melhor humor e falava de aviões. Levi, nos dias de melhor humor, respondia sobre aviões.
Nos outros dias, ambos, eram praticamente estranhos um ao outro.

Na primeira manhã de Dezembro Levi fazia um conserto num Kittyhawk e precisara dar partida no motor Allison V-1710 para ter certeza do reparo. Com a serenidade costumeira, Levi sentara-se no cockpit do caça, mas antes de acionar a ignição ouviu um grito:
-- Tire sua bunda imunda daí judeuzinho de merda! Seu lugar é junto à graxa e ao escapamento desse motor, nunca, nunca sentado nesse cockpit.
Agnelo estava irado. Sem um murmúrio, Levi “tirou a bunda” do acento de piloto do Kittyhawk, saltou à asa direita da aeronave, dali ao chão e afastou-se assoviando a canção Song of the Volga Boatmen enquanto uma orquestra de metal, vinda dos bolsos do seu macacão,  marcava a percussão.
Chegara Dezembro.
Levi, que fora convidado pela Banda do Encouraçado Arizona atracado no porto ao largo do canal, para tocar clarinete numa competição na praia de Waikiki, em Honolulu, ficando com o grupo em segundo lugar, afundara suas mágoas numa garrafa de Scotch e dormira a bordo da embarcação.
Mentira. Aquela seria mais uma entre todas as noites, daqueles Novembro e Dezembro, onde Levi não dormiria senão assombrado pela imagem de Anne Marie saltando sobre o casaco de couro e lã de um piloto de caça. Levi levantou-se, vestiu o velho macacão recheado de ferramentas e aprumou-se no estreito vão da escada que servia ao deck.
Do catre ao convés passaram-se horas ou segundos. Às sete horas e cinqüenta e três minutos daquela manhã de Dezembro, 353 aviões japoneses despertaram Levi da dor da desilusão para uma realidade muito mais trágica. Fogo, explosões, fumaça e gritos somavam-se ao ruído de metal retorcido e gritos de socorro. Colunas de fumaça negra subiam no horizonte sobre os campos de Hickam e Wheeler. Anne Marie, ele se perguntava, Anne Marie, Anne Marie.
Uma explosão no céu tirou-lhe do entorpe. Abatido por um Mitsubishi Zero, um caça Kittyhawk, uma das raras aerenonaves americanas no ar naquele momento, ardia em chamas e mergulhava em direção das águas claras de corais, onde ricocheteando, fora parar a poucos metros da amurada de convés do Arizona. A aeronave flutuava quase que por milagre. Levado por impulso, Levi saltou sobre uma de suas asas e em meio ao desequilíbrio de ondas e explosões retirou do cockpit um piloto ensangüentado. Ambos foram içados ao convés pelas cordas atiradas por marinheiros segundos antes do Kittyhawk submergir.
Havia fogo no Arizona, um torpedo atingira a torre de canhão de proa. Gritos misturavam-se as explosões e os sons de aeronaves japosesas rasgando o céu enchia os ouvidos. Levi permanecia de pé, ao lado do piloto abatido. Ele estava vivo e retirava óculos e touca de vôo ensangüentados.
--Agnelo?
Levi não teve tempo de ouvir a resposta. Às oito horas e seis minutos daquele Dezembro de 1941, uma bomba atingiu o depósito de munições do USS – Arizona.
Tudo explodia para Levi. O mecânico voou pelos ares sentindo serem arrancadas do peito todas as suas dores, dúvidas, medos e ciúmes. Enquanto estilhaços de metal rasgavam sua pele queimada pelo sol dos trópicos, sua cabeça estúpida repetia: Anne Marie, Anne Marie.
A marionete de Levi caiu das alturas, chocou-se com as águas fumegantes e, tragado pelo peso da memória ou por peças de metal percussivas enfiadas nos bolsos de um velho macacão de mecânico desapareceu nas espumas tintas de sangue.
Alheio aos sons vindos da superfície o corpo de Levi afundava lentamente. Em sua memória defunta, um clarinete tocava Glenn Miller  e as mãos esguias de uma pequena texana lhe passava uma chave 13/12.
Ele, morto, ainda afundava e afundava até que, por fim, seu corpo inerte encaixou-se na cabine do cockpit de um certo Kittyhawk, Curtiss P-40C, abatido. Sentando gentilmente no acento do piloto o cadáver repousou uma das mãos sobre um manche sem mais comandos enquanto a outra se estendia pela lateral da aeronave sobre uma pintura tosca onde se via uma rosa amarela. Abaixo da pintura estava escrito: Yellow Rose of Texas.
A bunda imunda de judeuzinho de merda permaneceu até o fim naquele cockpit.
Para certas coisas, seja no céu, no ar ou no mar, 
não há conserto.

2 comentários:

Maldito disse...

Fico imaginando o quão longe vc foi para buscar o tema desse conto,..rs! Totalmente inusitado.
Quando sai o livro?
Abraço!

Ana disse...

Querido. Fico me perguntando quantas vidas você já viveu pra escrever assim? Surpreendente! Adorei. Beijos e saudades.