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Menino besta cheio de sonhos aprisonado no corpo de um homem sóbrio e cheio de desejos.

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domingo, 28 de agosto de 2011

Caminhar por falta de espaço

        Na manhã seguinte ele se lançava ao mar. Não era só mais uma partida, era uma partida de tudo que conhecera como passado. Até então.
      A jangada de toras cansadas rangia no bater das ondas como rangiam seus dentes a remoer a memória.
      Ainda era como ela havia lhe dito:
     –Não há espaço para meus sonhos aqui nessa praia José.
     E fora assim que, na noite anterior, ela também partira. Batera a porta da cabana de taipa à beira mar. Pegara um velho lenço vermelho, amarrara no pescoço e caminhara em calma pela areia imaculada de pegadas da Caeira. Se fora. Partira em busca de um novo, que nem ao menos, ela mesma, podia imaginar como seria.
     Ele, sozinho no mar, no silêncio da boca travada em sal e solidão, tratou de afogar a última imagem dela. Tratou de não lembrar, por mais que a lembrança fosse sua única companheira. Pensava e pedia ao mar que apagasse seu pensar nos momentos que tinha vivido ao lado dela, em todos os planos, nos seus próprios sonhos e num juntos que não havia mais. Queria que tudo se apagasse como fazem as ondas com a espuma.
      Redes vazias e ventos contrários. Nem as bênçãos de Yemanjá caiam sobre os ombros queimados de sol do pescador e nem um minuto de paz lhe vinha. Lutou contra o oceano até o anoitecer e por fim, amarrado ao mastro tosco, dormiu.
     No escuro da noite sem lua uma sereia lhe disse:
     - Não há espaço para sua dor aqui nesse mar José.
    E o mar virou.
   O vento soprou forte, rasgando a vela de pena, enquanto José abandonava a rede libertando a jangada do mar. Os raios e trovões ensurdeceram a memória do pescador até que uma calma enorme tomou conta dele. Era ele e o escuro, o rugir e o ranger e o lembrar e o esquecer numa luta sem vencedores. Até que noite e mar o engoliram.
     Nessa época do ano as gaivotas faziam ninhos na ilha. Naquele momento havia uma centena voando e piando ao redor da Enseada da Caeira.
     José acordou com a primeira marola da maré de enchente lhe lambendo a cara. Levantou a cabeça meio zonzo, areia colada no rosto e, de joelhos, viu a cabana de taipa nos olhos turvos. Uma casa vazia de tudo.
     Ao redor, o vai e vem das ondas balançava destroços da jangada em meio à gritaria dos pássaros.
Sem jangada, sem planos, sem futuro. Sem Maria, sem o peixe e sem alegria José levantou-se e caminhou.
São conselhos ou tempestades que nos fazem caminhar? O não ter mais nada é também um começo: O começo de um novo caminhar.
     José tossiu e vomitou água do mar. Ao tentar limpar a boca viu na mão um trapo molhado; vindo do nada que lhe restou, um velho lenço vermelho estava enrolando na sua mão. Esperança ou lembrança ninguém saberia.

     José caminhou até a cabana, ateou fogo nas tralhas e caminhou pela Enseada da Caeira no Mar de Fora de Fernando de Noronha.
     - Nem no mar nem naquela praia haveria espaço para tanta dor.
     Melhor era caminhar adiante.
     Sobre a areia, tinta pela cor do fogo, as ondas lamberam a praia até que última marola da enchente levou pro mar um velho lenço vermelho ali abandonado.
     Ali, nem mais Maria e nem mais José.

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