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Menino besta cheio de sonhos aprisonado no corpo de um homem sóbrio e cheio de desejos.

Escolha a dose.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Antes de tudo forte

    Não fora por querência própria que Pompéia pegara aquela sétima barriga. Com o bucho às bocas de parir, veio-lhe a visagem antiga de Leôncio fungando-lhe no cangote, enquanto ela se esgoelava em vão, pois fora como de resto, a pulso, que o ajegado a abufelara às beiras do cacimbão no meio de um banho de asseio. Leôncio não valia o que o gato enterra. Vivia a bater sete freguesias sem dar ousadia ao abandono de Pompéia, que por sua feita, também não era mulher de botar canga ou cabresto em homem preferindo seu viver largado a ter um cabra fulero na barra da saia lhe pastorando. Desde que se amancebara com ele, o escroto já a tinha emprenhado seis vezes antes, sempre na curra; e em seis covas rasas ela já havia deitado, uma por uma, suas seis crias mortas.
    Sempre lhe pareceu, que assim como seus sonhos, nada que vinha de dentro dela vingava e um dia, a tudo se enterrava.
    Um vento quente, vindo do oiteiro, sacudiu os pés de planta, murchas em cacos e secou-lhe o choro grudado na cara enquanto ela dava fé do que se passava. Deu-se a bobônica. Deitada no chão de barro batido, com o fole do bucho estourado, Pompéia cubava o teto de paias velhas. Um fio fino de sol, na vertical do meio-dia, reluzia numa poça d'água entre suas pernas arreganhadas e emboladas na bainha de flores de chita, encharcadas pela água do ventre de açude pocado.
   Vieram as dores. Gemeu só. Ninguém pra ouvir. Como testemunhas daquele sofrer, só um par de alpercatas puídas e uma carne do sol, de chã-de-dentro, dependuradas junto às poucas panelas de fundo preto. De vivos por perto, só as mutucas zumbindo, barbeiros e calangos atentos por entre as frestas das paredes de taipa, que pouco faziam, parecendo só mangar do mal sucedido.
    Bamba e disleriada, agarrou-se na rede, de encerado de caminhão e arribou-se nos cambitos trêmulos escutando a latomia dos bacurins no chiqueiro, capando o gato com medo de um enorme barrão azogado. Ninguém pra acudir. Nem ao menos um canelau, filho de Deus, que tocando cabritas entre as palmas secas, pudesse lhe escutar os ais; enquanto o mesmo e conhecido, fio de sangue quente, corria-lhe, do priquito pelas pernas, feito biqueira.
   Amuletada na beirada do fogão de lenha, a barriguda arrastou-se até colar as pás rentes à parede. Deixou as costas relarem no barro até acocorar-se com os joelhos opostos. Cada pegada de ar era um suplício que fazia, seguido do bafo preso nos beiços como de quem se alivia a obrar.
    Foi o tempo de arrastar um balaio de roupa suja, fazer uma rodilha e apareceu-lhe do xibiu arregaçado, um cucuruto de cabeça molhado em sangues e gosmas. Nem olhou, cruzou os braços e espremeu o bucho como se um fora um furúnculo.
   Nesse exato momento o grito de um carcará riscou silêncio do azul misturando-se ao de Pompéia.
   Nessa hora, o tempo parou.

    No sertão tudo é lento. É sol, é pó, suor e solidão, na aridez estéril do sobreviver.
    Foi nessa lentidão abrasada que o tempo passou em silêncio, até que um choro esgoelado e faminto, acordou a parida do desmaio.
    No miolo do balaio, uma menina. A criaturinha ensebada, com moscas nos cantos dos olhos, costelas esticadas sob a pele frágil e punhos cerrados como quem desafia o destino, só sossegou quando encontrou a teta definhada da mãe.
   Agindo pelo instinto herdado das antepassadas Caiacós, Pompéia fez o praxe: Cortou o cordão do umbigo nos dentes, azuniu placenta e restos pela janela, onde os dois cachorros magros já arrudiavam na espera da bucha e arriou-se na cama de palha.
    A coisinha parida era inteira. Não era zambeta e nem parecia catroca. Não era zarolha e tinha os dedos todinhos, pois até dez, Pompéia contava certinho. Mamando com disposição de bezerra de couro branco a bichinha era coisa linda de se ver aos olhos marejados da mãe.
   Pompéia sorriu. Não lembrava mais de ter sorrido antes, ou até, se um dia sorrira, mas nessa outra hora, ela sorriu.
   — Tu vai vingá fiinha. — disse com esforço gemido pela boca falhada de dentes — Tu não vai se acabar aqui nesse nada, assim que nem eu ando me acabando. Tu vai crescer com esse leite minguado, depois no mingau de araruta e findar tirando força inté de palma seca, mas vai vingá. Minha Senhora do Rosário vai te fazê bunita e bem feitinha toda; e eu, eu vou te livrar da rola do teu pai quando tu beirar os quinze ano. Daí, com fé na Virgem, tu vira a rapariga mais afeiçoada de Caicó pronta prum coroné de posse te tomá no gosto. Aí tu inrrica e vem me buscá.
    Pompéia desejou assim, com todo o coração, um futuro melhor para sua filha; para selar esse pacto decidiu:
   — E tu fiinha, vai se chamá de Espererança.

4 comentários:

Kate disse...

A tristeza e pobreza do sertão, tão bem retratadas no seu conto. Ficou lindo meu amor, como tudo que você escreve. Beijos.

Ana disse...

Deus do céu David, vi tudinho! Visualizei a aridez do sertão, senti o calor castigante, gemi de dor com o parto, tive pena e inveja da coragem dessa mãe. Que coisa linda de se ler de de se sentir.
Bora publicar logo?! Hein? Bjs

Sofia disse...

Õ conto bommmmmmmmm da porra!!!!! ( em "baianês" mal ensaiado mesmo, que é pra dar ênfase).
Humano, agridoce, bem ao gosto do paladar desta leitora.

Anônimo disse...

Sempre vivo sem medo de errar ou, pelo menos, de tentar, não ter medo de tentar. Mas apreendo, pelo menos um pouco, a cada dia, com as sensações, com as angústias, com as dores, com a saudade,com o sofrimento, com o pesar,meus e dos outros, é verdade. E assim vou vivendo...