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Menino besta cheio de sonhos aprisonado no corpo de um homem sóbrio e cheio de desejos.

Escolha a dose.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Diferente

   Eram ele e aquele paninho a fazer carinhos no velho balcão de cedro polido no óleo de peroba. O balcão, amigo silencioso e ouvinte passivo de seus pensamentos, era a única testemunha confiável dos seus últimos vinte e um anos de vida. Seu nome, Uélintom, escrito assim mesmo, era completamente desconhecido por todos, da mesma forma que era de um total desconhecimento a sua própria vida. Afinal, viver para ele, se tratava apenas da vida dos outros, daqueles que se sentavam do outro lado balcão. Da vida dele ninguém ali sabia ou se importava em saber.
   Ele? Ele era o primeiro a chegar e o último a sair do bar, bar que, aliás, já estava no terceiro nome, já havia trocado de equipe dezenas de vezes e sofrido algumas reformas. Só mesmo ele continuava o mesmo. Caladão, sorriso meigo, olhos de verde antigo, prestativo e elegante. Jamais havia sido visto sem a gravatinha preta, o colete e a cabeleira prateada penteada a esmero.
   -Ô Cabeleira!Bota mais uma aqui, por favor? – Para todos, ele era apenas o Cabeleira.
   Desabafos de corações partidos, festas de aniversário, descasadas carentes, despedidas de solteiro, galantes paqueradores, casais entediados, e o famoso “repiau”, como ele mesmo dizia, eram a sua vida. A vida dos outros.
   -Ô Cabeleira! Bota um chorinho aí vai?
   Ele botava um chorinho, lavava os copos e taças maculadas de batom, arrumava garrafas a meio ventre vazias; cortava rodelas simétricas de limão, enchia baldes sedentos de gelo e voltava ao cúmplice paninho. Polir o balcão era pra ele o único ato de carinho, carinho físico eu me refiro, era o único “tocar em alguém” e ele o alisava, horas como quem esfrega escadaria de igreja, horas como quem faz carinho na bunda gorda de uma velha esposa.

   Cabeleira era querido. Amado? Amado não, só querido. E era querido apenas por que ouvia. Ouvia como ninguém: Ouvia desabafos de corações partidos, o baterem de palmas nos “Parabéns Pra Você”, jovens senhoras carentes, nubentes esperançosos, “Don Ruans” fanfarrões, ouvia o silêncio do tédio de casais em crise e mesmo no Happy Hour, reservava-se apenas o direito de murmurar:
-É... Podia ter sido diferente, quem sabe? Não é verdade?
   Dois anos depois do dia em que Cabeleira não apareceu para trabalhar, quando já um novo barman, que fazia até mágicas e malabarismos com garrafas ocupara seu posto atrás do balcão empunhando um longo cabelo negro preso num rabo-de-cavalo, entrou no bar uma senhora. Entrou ansiosa, trazendo pela mão uma jovem de seus 20 anos com olhos de verde antigo e um papel na mão a conferir o endereço.
   -Boa tarde, eu queria falar com Wellington, por favor. – Disse ao novo gerente da tarde.
   - Queira me desculpar senhora, mas não trabalha ninguém aqui chamado Wellington.
   A jovem de olhos verde antigo tomou a mão da senhora de cabelos grisalhos entre as mãos e disse:
   - Vem mãe, você já procurou em todos os bares dessa cidade, não poderia ter sido diferente, não é verdade?
    Do fundo do balcão alguém gritou:
   - Ô Cabeleira, bota mais uma aqui, por favor?
   E a vida seguiu, diferente. Não é verdade?

2 comentários:

Kate disse...

Que lindo, David. Triste, mas lindo. Dá vontade de entrar noconto e ir lá puxar ele pelo braço...

David Sento-Sé disse...

Tenho saudades Kate