Nesse exato momento, oito e quarenta e cinco da noite, acabei de sair do meu chuveiro e abri a janela pensando no que tenho pra fazer amanhã.
Pela janela, vi o resto do mundo sem que o mundo pudesse me ver:
São 21:50 em Buenos Aires e Eva chora sentada no chão do chuveiro, relembrando em culpas, os momentos terríveis do aborto praticado mais cedo.
6:24, Nova Deli. Abhaya, 12 anos, tempera abobrinha com pimenta para o desjejum, com o chá de cardamomo, enquanto agradece a Mahadevi, um deus.
O velho Abadir, no leito de palhas em Atenas as 3:55, acorda assustado com a lembrança dos pára-quedistas alemães que ainda o assombram.
Augustin também não dorme às 2:55. Olha o teto fixamente ao imaginar-se na praça de touros em Madri pela manhã.
Li, de Pequim, matou uma galinha as 8:57. Era a última. Ela esperava vender no mercado, mas a fome falou mais alto.
17:56, em Seattle, Anne Marie caminha com o frio da tarde, esperando não ser assaltada até chegar em casa.
Em Dublin são 1 da manhã, Devlin, sentado na sala escura, olha a última pilha de batatas guardadas para uma sopa. Desde os atentados ele não arruma emprego. Seus filhos dormem.
4 da madrugada, Cartum, Sudão, Sidding esconde a última barra de chocolate, salva das mãos de vizinhos, na luta por mantimentos atirados pelos pára-quedas da ONU.
3 da tarde, em Honolulu, Malu devora sua quinta asa de franco sentada na frente da TV.
Quase 8 da noite em Lima e Ruan ainda está limpando o altar, na Igreja de Miraflores, para a missa da manhã seguinte.
Em Apia, 3 da tarde nas Ilhas Samoa, Drika finalmente morreu. Parentes e amigos estão de pé na porta da tenda tosca. Os homens açoitam-se e as mulheres choram em silêncio.
11 e meia, perto de Adelaide, Gundoii, um aborígene, escolheu a sombra da última árvore como local ideal para esfolar o canguru abatido.
E em Nuuk, Dinamarca, 10 da noite, a esperada Giselle finalmente nasceu. Ela tem Síndrome de Down e será muito amada por seus pais.
Por vezes, a gente consegue ver muito além das nossas janelas.
Por vezes, a gente consegue ver um mundo inteiro ao nosso redor.
Por vezes, a gente consegue ver alguém muito longe da gente.
Por tanto tenha certeza: Sempre, ao menos uma pessoa, está olhando pra você. Agora.
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